Quando nos debruçamos sobre o estudo da formação social do nordeste, temos uma elenco de personagens que moldaram a identidade desta região do Brasil. Buscando memorizar a partir do século XIX, encontramos Antônio Conselheiro e sua Canudos, no sertão da Bahia; Antônio Silvino, Lampião e Corisco em destaque no cangaço; a musicalidade de Luiz Gonzaga e o multi facetado Cícero Romão Batista. Denomino este último personagem como a matriz religiosa do catolicismo nordestino, porém um homem que merece ser visto em 4 faces: o sertanejo anônimo até os 21 anos, assim como milhões de outros de sua época; o seminarista inquieto que tornou se Padre e foi arrebanhar cristãos no sertão do Cariri; o carismático articulador que deu independência ao povoado de Juazeiro do Norte, tornando-se o seu fundador e líder supremo; e o homem que tornou se Mito até os nossos dias. A vida deste personagem se prolongou por 90 anos, longevidade que o favoreceu para realizar tudo o que planejou, ou até mais do que havia sonhado. Órfão de pai aos 18 anos, se viu na responsabilidade de - mesmo imaturo - dividir com sua mãe a tarefa de garantir a sobrevivência, bem como a moral da família, composta por sua matriarca, duas irmãs e uma criada. Plenamente vocacionado para a evangelização, aos 21 anos é admitido como seminarista na distante Fortaleza, capital do seu Estado. Com recursos mínimos, apoio de um importante coronel, Cícero passa 5 anos estudando, longe da família. Retorna ao seu reduto sertanejo, para ser um padre como tantos outros naquela região. Mas seu perfil o molda em ser alguém fora do comum. A partir de um polêmico fenômeno - suposto milagre - vê a sua popularidade alcançar as fronteiras do estado. Questionado pelo seu Bispo, D. Joaquim Vieira, se acirra um tensionamento que nada tem de cristão, nos quesitos perdão, tolerância, caridade. Transpõe a hierarquia católica e as fronteiras do Brasil, e vai para o Vaticano, explicar-se ao Papa Leão XIII. Excomungado pela igreja e venerado pelo povo, Cícero só se fortalece a cada diversidade que enfrenta. Envolvido em causas sociais, rompe o século XIX e na aurora do século XX, desmembra o Juazeiro da cidade do Crato, firma o Pacto dos Coronéis, unindo 16 chefes políticos em torno do seu nome, e planilha a estrada do sertão ao litoral, criando as condições do apoio popular necessário para governar ou influenciar todo o estado do Ceará. Num polêmico ato, no ano de 1926, recebe Lampião, outro mito, no seu reino encantado do Juazeiro. De fala simples, sabedoria ímpar e carisma angelical, seus azulados olhos permitem uma visão futurista daquela sociedade. Extremamente hábil em suas falas, o padre desfaz qualquer barreira entre o pastor e o seu rebanho, o que denomino “jeito caseiro de evangelizar”. Somando essas habilidades com a visão política do médico Floro Bartolomeu, assistido pelo libanês Benjamin Abrahão, seu secretário particular, auxiliado pela governanta Beata Mocinha, e como devota Maria de Araújo, a beata da hóstia que sangrou, o padre cria um time seleto de personagens que, sob seu comando, imprimem sua marca indelével no coração dos seus Juazeirenses, além dos milhares de romeiros à sua época. Cícero Romão transitou entre política e religião com a mesma habilidade, acima do seu tempo e muito além dele. Fundador da cidade, foi Prefeito, Vice Governador do Ceará, Deputado Federal...títulos passageiros, nada comparável ao mito que se tornou até os nossos dias. Explicar ou entender o referido personagem? Ainda não, em sua totalidade. Uma face de cada vez. No monumento maior, do alto da colina que abriga sua gigantesca estátua de 25 metros de altura, dia e noite, o simbolismo do mito contempla sua Juazeiro, e tem aos seus pés uma multidão diária de conterrâneos, romeiros, beatas, estudiosos, católicos, ateus, jornalistas e todos aqueles que querem conhecer o mito sertanejo e seu maior milagre: a capacidade de se eternizar na história e na memória do povo. Viva Juazeiro do Norte, sua cultura e sua gente, guiada pelas mãos do seu Padim Cícero Romão Batista. História, fé e ação com a marca genuinamente nordestina.
Prof. José Urbano