Antonio Máspoli de Araújo Gomes
Pesquisador do Laboratório de
Psicologia Social e Estudos de Religião da USP
e professor da Universidade
Presbiteriana Mackenzie
A mais nova contribuição de Lira
Neto ao gênero biográfico trata-se da obra Padre Cícero, Poder, Fé e Guerra no
Sertão, lançada pela Editora Companhia das Letras em 2009. Nessa obra, Lira
lança mão da sua experiência de pesquisador, jornalista e escritor para
revisitar a figura emblemática do padre Cícero Romão Batista ou o "Meu
Padim, Padim Ciço", como é carinhosamente chamado, até hoje, pelo romeiro
sertanejo, seu seguidor. Explicitado pelo autor, o objetivo da obra consiste
numa contribuição histórica para a redenção do padre Cícero perante a Igreja
Católica Apostólica Romana, barrando, assim, o vertiginoso crescimento
evangélico no sertão nordestino. O livro é uma obra interessante, pois a
criatividade e a imaginação do autor se misturam com os fatos históricos em
torno do padre Cícero. O autor utiliza, com extrema sabedoria, o romance, a
biografia e a ficção, em que até aquelas histórias criadas pelo imaginário
popular em torno da figura mítica do padre encontram o seu lugar e brindam o
leitor com uma leitura agradável sobre o multifacetado sacerdote. Padre Cícero
é modelado na pena de Lira como o Messias do Nordeste brasileiro, especialmente
daquele Nordeste que se encontra no semiárido, no chamado Polígono da Seca.
Assim sua obra tem duas partes: a primeira, em que o padre Cícero aparece como
uma figura sagrada, piedosa e santa, tem treze capítulos e é intitulada
simbolicamente de "A Cruz"; a outra, em que o "Padim Ciço"
aparece como um chefe político, militar e religioso, um verdadeiro pater
família, também tem treze capítulos e é denominada de "A Espada".
Respectivamente, Lira descreve o padre Cícero inicialmente como um santo, e em
seguida como um pecador.
O CENÁRIO
O autor descreve com singeleza o
espaço messiânico onde tais fatos ocorreram: em Juazeiro do Norte no Cariri, ao
sopé da Chapada do Araripe. Sobre o Cariri vale frisar que quem do sertão
caminhe para a Chapada do Araripe vê a caatinga ir-se transmudando em cerrados
de melhor aspecto; no último trecho da viagem, notadamente de Lavras em diante,
e transpostos os poucos elevados contrafortes da Serra de São Pedro, há de
notar que a flora como se adensa e avulta, em mais rápido alento. Entrecortada
pela caatinga, rala e enfermiça, com trechos quase desertos para as bandas do
leste, ocupando larga porção dos municípios de Aurora e Milagres, à direita da
ravina coletora das águas, está o que os mapas indicam com o nome pomposo de
Rio Salgado. Ali, as juremas se apresentam sempre tristes, as imburanas quase
desfolhadas, a oiticica, e o próprio juazeiro, sem a copa altiva, com que
noutros pontos domina e alegra toda a paisagem. E, de espaços em espaços, se
sobressaem, amiudados, os desolados cômoros de pedra e areia, em que só logram
medrar o xiquexique, o mandacaru, o facheiro alteroso e solene, ou a macambira
de lanças aguçadas. A região não sofre os rigores da seca. As estiagens
prolongadas influem, ao contrário, beneficamente, no seu desenvolvimento
econômico. Acossadas por elas, as populações circunvizinhas, num raio de muitas
léguas, pagam um alto preço pelos cereais e o açúcar. E oferecem-lhe, ainda
hoje, ademais, milhares de braços pelo preço do pão de cada dia. Juazeiro do
Norte, cidade que se encontra no lado mais seco e pobre do Cariri, é o cenário
para a ocorrência dos milagres de Juazeiro, tendo Maria de Araújo e o padre
Cícero como principais atores. Eis uma síntese da primeira parte da obra de
Lira Neto.
PADRE CÍCERO, O SANTO
No Vale do Cariri, estado do
Ceará, um cenário épico por si mesmo, nasceu, viveu e morreu o padre Cícero
Romão Batista. O padre nasceu no dia 24 de março de 1844 no município do Crato.
Era filho de Joaquim Romão Batista e Joaquina Vicência Romana, conhecida como
dona Quinô. Aos 6 anos de idade começou a estudar com o prof. Rufino de
Alcântara Montezuma. Um fato importante marcou a sua infância: o voto de
castidade, feito aos 12 anos, influenciado pela leitura da vida de São
Francisco de Sales. Em 1860, foi matriculado no colégio do renomado padre
Inácio de Sousa Rolim, em Cajazeiras, Paraíba. Aí pouco demorou, pois a inesperada
morte de seu pai, vítima de cólera, em 1862, o obrigou a interromper os estudos
e voltar para junto da mãe e das irmãs solteiras.
A morte do pai, pequeno
comerciante no Crato, trouxe sérios aperreios financeiros à família, de tal
sorte que, mais tarde, em 1865, quando Cícero Romão Batista precisou ingressar
no Seminário de Fortaleza, só o fez graças à ajuda de seu padrinho de crisma, o
coronel Antônio Luiz Alves Pequeno. Aluno medíocre. Terminou seus estudos com
dificuldades, e com dificuldade Cícero foi ordenado no dia 30 de novembro de
1870. Após sua ordenação retornou ao Crato, e enquanto o bispo não lhe dava
paróquia para administrar, ficou como professor de Latim no Colégio Padre
Ibiapina, fundado e dirigido pelo prof. José Joaquim Teles Marrocos, seu primo,
grande amigo e defensor nas quizílias e querelas com a Igreja Católica. No
Natal de 1871, convidado pelo prof. Semeão Correia de Macedo, padre Cícero
visitou pela primeira vez o povoado de Juazeiro, então pertencente à cidade do
Crato, e lá celebrou a tradicional Missa do Galo. Nessa época Juazeiro não
passava de um povoado, com população rarefeita, geralmente habitado por
desordeiros, prostitutas e outros empobrecidos e marginalizados pelo latifúndio
nordestino. Segundo Lira Neto, o padre visitante, de 28 anos de idade, estatura
baixa, pele branca, cabelos louros, olhos azuis penetrantes e voz modulada
impressionou os habitantes do lugar. E a recíproca foi verdadeira. Por isso,
decorridos alguns meses, exatamente no dia 11 de abril de 1872, lá estava de
volta, para fixar residência definitiva em Juazeiro. A cidade,
então, não passava de um pequeno aglomerado de casas de taipa e uma capelinha
erigida pelo primeiro capelão padre Pedro Ribeiro de Carvalho, em honra a Nossa
Senhora das Dores, padroeira do lugar. Seu primeiro ato foi melhorar o aspecto
da Capelinha. Depois, tocado pelo ardente desejo de conquistar o povo que lhe
fora confiado por Deus, desenvolveu intenso trabalho pastoral com pregação,
conselhos e visitas domiciliares, como nunca se tinha visto na região. Dessa
maneira, rapidamente ganhou a simpatia dos habitantes, passando a exercer
grande liderança na comunidade. Sua pregação era muito simples: quem roubava
não devia roubar mais; quem bebia não devia beber mais; quem matava não devia
matar mais, etc. Paralelamente, agindo com muita austeridade, cuidou de
moralizar os costumes da população, acabando pessoalmente com os excessos de
bebedeira, prostituição e violência no povoado. O centro da obra de Lira Neto,
nessa primeira parte, é o chamado Milagre de Juazeiro. Um fato incomum,
acontecido em 10 de março de 1889, que transformaria a rotina do lugarejo e a
vida de padre Cícero para sempre. Naquela data, ao participar de uma comunhão
geral, oficiada por ele, na capela de Nossa Senhora das Dores, a beata Maria de
Araújo, ao receber a hóstia consagrada, não pôde degluti-la, pois ela
transformara-se em
sangue. Acontecia ali no sertão, aos olhos de todos, o
milagre da transubstanciação. O milagre continuaria a ocorrer diariamente,
tendo sua epifania na manhã do dia 11 de junho de 1890, numa humilde capelinha
da Nossa Senhora das Dores, padroeira do lugar: depois de receber das mãos do
padre Cícero Romão Batista a hóstia consagrada, a beata Maria de Araújo caía
por terra em violenta crise nervosa. Os fiéis presentes, que a socorreram,
notaram que um fiozinho de sangue lhe escorria da boca entreaberta; ao mais
detido exame, verificaram depois que o trigo usado na eucaristia se havia
transformado em sangue vivo, rubro e palpitante. O padre tornou-se o fiador de
tal milagre, perante a Igreja e diante do povo. A Igreja considerou o milagre
um ultraje à Santa Ceia. O povo, por outro lado, celebrava a visitação do
Cristo no sertão. Cícero enfrentou a perseguição da Igreja, o isolamento
oficial que culminou, depois de um longo processo, na suspensão de seu
ministério pastoral pelo bispo Dom Joaquim Vieira, e finalmente enfrentou a
fúria dos inquisidores de Roma. Esse evento milagroso atraiu milhares de
devotos de todo o sertão brasileiro. A esse tempo, porém, milhares de devotos
já se haviam estabelecido nas redondezas, certos de que era aquela a Canaã
prometida. Ademais, fácil era o culto, e a liberdade de costumes, atraente. A
ideia de se construir um grande templo, como agradecimento àquela graça inefável,
impunha-se a todos. O povoado passou a ser alvo de peregrinação: as pessoas
queriam ver a beata e adorar os panos manchados de sangue e receber a bênção do
"Meu Padim, Padim Ciço". Os romeiros, continua Lira Neto, principiam
a afluir para Juazeiro em levas e levas de indivíduos famintos, excluídos da
religião oficial e da sociedade, marginalizados, fanáticos de todos os matizes.
E, como o milagre se repetia em outras comunhões da beata, mais e mais era
propalada a notícia, e mais engrandecida de boca em boca. Juazeiro
cresceu à sombra do padre Cícero e seus milagres. Em 1920 já contava com cerca
de trinta mil moradores. Nas festas de Nossa Senhora das Dores recebia pelo
menos mais vinte mil como consequência. Dentro em pouco, outro culto se
corporizava, na adoração em pessoa do novo Messias, encarnado na figura
sacrossanta do padre Cícero. De início, padre Cícero tratou o caso com cautela,
guardando sigilo por algum tempo. Os médicos Marcos Madeira e Idelfonso Correia
Lima e o farmacêutico Joaquim Secundo Chaves foram convidados para testemunhar
as transformações e depois assinaram um atestado, afirmando que o fato era
inexplicável à luz da ciência. Isso contribuiu para fortalecer no povo, no
padre Cícero e em outros sacerdotes a crença no milagre. O professor e
jornalista José Marrocos, desde o começo um ardoroso defensor do milagre,
cuidou de divulgá-lo pela imprensa. As notícias logo chegaram ao Palácio
Episcopal. O bispo do Ceará, à época D. Joaquim Vieira (o padre Vierinha), da
cidade de Campinas, estado de São Paulo, nomeou uma comissão de sacerdotes e
médicos com a delicada incumbência de verificar o extraordinário fenômeno. E,
se possível, negá-lo a bem da fé e da verdade. Segundo Lira Neto, depois de
várias pesquisas e da observação repetida do próprio fato, tal comissão
declarou, num primeiro documento, que o caso não podia ter explicação natural e
devia ser tomado como expressão miraculosa. Um dos médicos chegou mesmo, em
arroubo inicial, a professar a sua fé em atestado escrito que o sangue em que a
hóstia se transformava não podia deixar de ser senão o sangue de Jesus Cristo.
Houve época em que as maravilhas se multiplicaram espantosamente. Durante as
lutas da revolução de fins de 1913,
a crença geral era a de que quem morresse pelo Padrinho,
onde quer que fosse, ressuscitaria, perfeito e são, no seio da Meca. E
contam-se casos de ressurreição para sua comprovação e casos de que por lá
ninguém duvida. Sobre a pressão de Dom Joaquim Vieira, a comissão voltou a
falar, e dessa vez para uma retratação pura e simples. Surgiram hipóteses
naturalíssimas para a explicação do fenômeno, prevalecendo, no entanto, a de
que o sangue proviesse das gengivas maltratadas da beata, da língua ou de uma
ferida na garganta, que sangrava sob a intensa comoção do ato. O padre Cícero e
sua beata tornam-se objeto de zombaria e escárnio da Igreja e da imprensa
cearense. Quanto mais era perseguido, mais o povo o canonizava. Assim nasce o
Santo de Juazeiro na concepção de Lira Neto. Com a posição contrária do bispo,
criou-se um tumulto, agravado quando o Relatório do Inquérito foi enviado à
Santa Sé, em Roma, e essa confirmou a decisão tomada pelo bispo. Todos os
padres que acreditavam no milagre foram obrigados a se retratar publicamente,
ficando reservado ao padre Cícero uma punição maior: a suspensão da ordem.
Durante toda sua vida ele tentou revogar essa pena. Foi pessoalmente a Roma
perante o Tribunal do Santo Ofício para isso; todavia, em vão. Aliás , ele até que
conseguiu uma vitória em Roma, quando lá esteve em 1898. O Tribunal do Santo
Ofício o autorizou a rezar missa. O bispo Dom Joaquim Vieira não considerou a
posição do Santo Ofício e manteve o padre afastado dos seus deveres de
sacerdote.
PADRE CÍCERO, O PECADOR
Na segunda parte da sua obra,
Lira Neto nos apresenta o padre Cícero como chefe político, líder de jagunços e
cangaceiros, um verdadeiro coronel de batina. A constante doação dos fiéis,
pouco a pouco, o transforma também em latifundiário. Os
propalados milagres de Juazeiro concederam ao padre Cícero importante poder
simbólico. As terras que recebia em doação dos romeiros trouxeram poder
econômico. Faltava-lhe, porém, o poder político. Este veio ao seu encontro com
a revolução de 1914. Juazeiro passa a ser considerado uma Nova Canudos. O
governo do Ceará intenta destruí-la. Padre Cícero comanda pessoalmente, através
de Floro Bartolomeu, seu lugar-tenente, a resistência. O apoio dos jagunços e
cangaceiros lhe garante uma revolução vitoriosa contra o governo do Ceará em 1914. A revolução de 1914 o
consagrou como líder político e chefe paramilitar. O meio era o mais propício,
certamente, e o herói, um predestinado. Vitorioso, o padre Cícero de Juazeiro,
como ficou conhecido após a revolução de 1914, barganha sua independência do
Crato. Conseguida a independência de Juazeiro, em 22 de julho de 1911, padre
Cícero foi eleito prefeito do recém-criado município. Além de prefeito, também
ocupou a vice-presidência do Ceará. Sobre sua participação na revolução de 1914
ele afirmou categoricamente que a chefia do movimento coube ao doutor Floro
Bartolomeu da Costa, seu grande amigo. Na perspectiva de Lira Neto, a revolução
de 1914 foi planejada pelo governo federal com o objetivo de depor o presidente
do Ceará, o cel. Franco Rabelo. Com a vitória da revolução, padre Cícero reassumiu
o cargo de prefeito, do qual havia sido retirado pelo governo deposto, e seu
prestígio cresceu. Sua casa, antes visitada apenas por romeiros, passou a ser
procurada também por políticos e autoridades diversas.
Outra figura proeminente que
aparece ao lado do padre Cícero trata-se do doutor Floro Bartolomeu. Floro, um
político experiente, tornou-se o mentor político e o conselheiro militar do
padre Cícero. O doutor, como era costumeiramente chamado pelos romeiros,
esquecia-se de imitar o prefeito no disfarce da embriaguez do poder. O povo,
vencido pela adoração do padre, jazia inconsciente aos pés do doutor. E assim
foi sempre. Se o padre queria uma coisa que lhe não ficava bem, com a execução,
passava a imputabilidade ao doutor, menos escrupuloso, e o povo, sem saber mais
distinguir um do outro, obedecia a este como se fora aquele. Tal se deu na
revolução de 1914. Ao doutor Floro, segundo Lira Neto, já não bastava uma
cadeira na Câmara Municipal de Juazeiro, não o contentava mais o comando de
seus cangaceiros sacrificados: sonhou com o Parlamento Estadual, com suas
rendas. E lá se foi sentar numa cadeira do Congresso do Estado, por obra e
graça do padre Cícero que, descarregando nele sua gaveta de títulos eleitorais,
tinha em vista ganhar, junto ao governo, aquela posição de valia, na pessoa de
seu lugar-tenente. Mas o poder é como cachaça: quanto mais se bebe, mais se
quer beber. Por isso, eis agora o doutor com os olhos no Congresso da Nação. E
há dificuldade para Juazeiro, quando o padre Cícero quer? Se houvesse dois
candidatos os títulos ainda sobrariam. Doutor Floro foi elevado pelo voto de
cabresto dos romeiros a deputado federal! Por fim, o padre se queixava,
abertamente, da tirania do doutor. Dantes, ele era tudo. Agora, um espectro,
tangido pelas mãos de Floro. Antes podia dizer, como disse a um hóspede
interessado em questões do foro, "Que em Juazeiro o prefeito, a Câmara, o
juiz, o delegado, o comandante, a polícia, o carcereiro, era ele". Agora
era forçado a confessar que sobre o governo do município ele nada sabia; quem
fazia tudo era o doutor Floro. Lira Neto descreve padre Cícero como o maior
benfeitor de Juazeiro, e a figura mais importante de sua história. Foi ele quem
trouxe para Juazeiro as ordens dos Salesianos e dos Capuchinhos; doou os
terrenos para construção do primeiro campo de futebol e do aeroporto; construiu
as capelas do Socorro, de São Vicente, de São Miguel e a Igreja de Nossa
Senhora das Dores; incentivou a fundação do primeiro jornal local (O Rebate);
fundou a Associação dos Empregados do Comércio e o Apostolado da Oração;
realizou a primeira exposição da arte juazeirense no Rio de Janeiro; incentivou
e dinamizou o artesanato artístico e utilitário, como fonte de renda;
incentivou a instalação do ramo de ourivesaria; estimulou a expansão da
agricultura introduzindo o plantio de novas culturas; contribuiu para a
instalação de muitas escolas, inclusive a famosa Escola Normal Rural e o
Orfanato Jesus Maria José; socorreu a população durante as secas e epidemias,
prestando-lhe toda assistência e, finalmente, projetou Juazeiro no cenário
político nacional, transformando um pequeno lugarejo na maior e mais importante
cidade do interior cearense. Essa obra econômica, política, religiosa e social
do padre Cícero Romão Batista é o verdadeiro milagre de Juazeiro. Só pela sua
obra, como líder político de Juazeiro, transformando aqueles excluídos das
secas do latifúndio, já lhe caberia a canonização. Os muitos bens que o padre
Cícero recebeu por doação dos romeiros, durante sua quase secular existência,
foram doados à Igreja, sendo os salesianos seus maiores herdeiros. Ao morrer,
no dia 20 de julho de 1934, aos 90 anos, seus inimigos gratuitos apregoaram
que, morto o ídolo, a cidade que ele fundou e a devoção à sua pessoa acabariam
logo. Enganaram-se. A cidade prosperou e a devoção aumentou. Até hoje, todo
ano, religiosamente, no Dia de Finados, uma grande multidão, com cerca de cem
mil romeiros, vindos dos mais distantes locais do Nordeste, chega a Juazeiro
para uma visita ao seu túmulo, na Capela do Socorro. A obra de Lira Neto faz
uma apologia em favor da reabilitação do padre Cícero perante a Igreja
Apostólica Romana. Cícero Romão Batista é fruto de uma época. Nasceu em
circunstâncias sociais e históricas específicas. A obra de Lira carece dessa
contextualização dos fatos. O autor cita farta documentação, porém não utiliza
nenhuma metodologia como forma de referência bibliográfica. Não seria a santa
rebeldia do padre sua maior força perante os excluídos de todas as vertentes do
cristianismo no Nordeste? O padre Cícero, a beata Maria de Araújo e todos os
milagres atribuídos a Juazeiro ainda permanecem naquele espaço denominado por
Roger Bastide de "sagrado selvagem". Não seria a recondução do padre
(in memoriam) ao seio da Igreja a domesticação desse sagrado? O livro Padre
Cícero, Poder, Fé e Guerra no Sertão finalmente se constitui num importante
instrumento de pesquisa para estudiosos, professores e alunos das Ciências
Humanas e Sociais e outros interessados na compreensão da religiosidade popular
brasileira.
(Fonte: Revista da USP, Nº 86 -
São Paulo, ago. 2010)