A região Nordeste vivenciou nos últimos dois anos (2011-2012) mais um período de seca. Em 2013, os institutos meteorológicos apontam que novamente os índices de precipitação ficarão abaixo da média necessária para garantir o abastecimento satisfatório dos reservatórios hídricos, tampouco serão capazes de garantir condições para a safra de grãos, sobretudo dos pequenos produtores que realizam seus plantios sem uso de técnicas de irrigação, dependendo exclusivamente da quadra chuvosa para o cultivo.
No Ceará, que possui uma área total de 148.825,6 km 2, 86,8% desse total, ou seja, 126.514,9 km 2 estão inseridos em pleno semiárido, que abrange um total de 150 dos 184 municípios cearenses. Em 2013, apesar de nem todo o estado se encontrar dentro do semiárido, dos 184 municípios que o compõem, 177 declararam situação de emergência em virtude da falta de chuvas, demonstrando a gravidade da situação.
Se em pleno século XXI, período no qual se dispõe de maiores recursos técnico-científicos, tanto para prever quanto para mitigar os efeitos da seca, as consequências desse fenômeno natural são alarmantes para as lavouras, os rebanhos e a sociedade, sobretudo para o homem do campo, em especial os mais pobres, observando seus efeitos na atualidade, podemos concluir como eram devastadoras as consequências da seca nos séculos anteriores. Mas é justamente do passado, de experiências ocorridas em comunidades rurais da região do Cariri, surgidas em torno de aconselhamentos do Padre Cícero, de Juazeiro do Norte, que podemos buscar lições de como melhor conviver com o semiárido, na tentativa de encontrar metodologias e ações que, se postas em prática, podem vir a amenizar os efeitos das periódicas secas que assolam parte da região nordestina.
Primeiramente, é necessário desmistificarmos alguns (pré)conceitos sobre o Nordeste brasileiro. É muito comum que essa região seja, muitas vezes, associada apenas à paisagem da Caatinga em seu período de queda das folhagens em virtude do período de estiagem e a contextos de miséria em decorrência da seca. No entanto, não é todo o Nordeste do Brasil que sofre com esse fenômeno natural. Nem todo o Nordeste é abrangido pela Caatinga, existindo outros biomas na região. É preciso desmistificar também a falsa compreensão da Caatinga como sendo uma área “sem vida”. Ao contrário do que o senso comum imagina, a Caatinga possui uma rica biodiversidade de fauna e flora, ainda pouco conhecida e pesquisada.
Também é preciso compreender que a seca é um fenômeno natural recorrente e que as mazelas vivenciadas pela população, quando ela ocorre, são de caráter eminentemente social. Se a concentração de renda e concentração fundiária não fosse tão intensa, se o desenvolvimento regional do Nordeste não se desse de maneira tão desigual entre capitais, cidades médias e o interior, os efeitos da estiagem não seriam tão impactantes. Da mesma forma, se o acesso à educação e o nível de escolaridade da população fossem maiores, se o acesso a recursos financeiros, tecnológicos e a assistência técnica fossem satisfatórios e se existisse diversificação produtiva e que ocupasse a população economicamente ativa em atividades dinâmicas, a realidade do semiárido seria bastante diferente.
É na área definida como polígono das secas, que compreende partes dos territórios dos estados do Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Bahia e extremo norte de Minas Gerais e do Espírito Santo que a semiaridez e os efeitos da escassez de chuva são mais intensos. Porém, mesmo nessa área politicamente delimitada, não existe homogeneidade do quadro ambiental. Nos estados mencionados existem áreas mais úmidas, menos úmidas, há os microclimas que favorecem a ocorrência de precipitações, diminuindo o déficit hídrico e dando origem a solos profundos, férteis e propícios ao cultivo agrícola. Esse é caso da região do Cariri cearense, localizada no extremo sul do Ceará, na divisa com os estados de Pernambuco, Paraíba e Piauí.
Encravado em pleno sertão nordestino, o Cariri do Ceará apresenta características peculiares que o diferenciam do seu entorno sertanejo, embora também seja sertão, por se configurar como um enclave úmido em pleno semiárido. Essa característica é possibilitada pela existência do relevo arenítico da Chapada do Araripe e pela Floresta Nacional do Araripe, que dão origem a 348 fontes, segundo dados do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), formando uma série de riachos perenes, o que resulta em uma área de solos mais produtivos, fazendo da região do Cariri cearense uma “ilha agrícola” no meio da Caatinga.
Entretanto, até mesmo o Cariri, com essa enorme quantidade de fontes, não escapa ileso dos períodos de estiagem prolongados. Foi nesse cenário que cresceu e viveu Padre Cícero Romão Batista, um importante líder religioso e político com grande influência no Nordeste, sobretudo no Ceará.
Figura bastante controversa em razão do seu trânsito livre entre as diferentes classes sociais, o Padre Cícero é visto por uns como sendo o “padinho”, uma figura carismática que costumava chamar os romeiros e os habitantes da cidade de Juazeiro do Norte de “amiguinhos”, um homem que se tornou um santo popular ainda em vida, em decorrência dos supostos milagres de transformação da hóstia consagrada em sangue, durante comunhões que ministrava à beata Maria de Araújo. Desses acontecimentos, surgiu uma enorme devoção em torno do sacerdote, dando origem à s romarias que na atualidade atra em cerca de dois milhões e meio de fiéis por ano à cidade de Juazeiro do Norte. Já outros o veem como uma figura estritamente política, por ter sido o primeiro prefeito da cidade de Juazeiro do Norte e em razão das atitudes e alianças que o caracterizariam como um tradicional coronel nordestino, ligado às oligarquias fundiárias do estado do Ceará. Sem entrar nesses méritos, este artigo tem o intuito de refletir sobre a influência do Padre Cícero na formação de núcleos rurais na região do Cariri, que se formaram a partir das romarias em torno de sua pessoa, quando ainda era vivo, e analisar como as suas ações políticas, sociais e suas concepções ecológicas influenciaram na organização e nas relações de convívio e apropriação da natureza realizada por essas comunidades.
Se na atualidade os efeitos dessas secas periódicas ainda geram problemas sociais de significativa relevância, de meados do século XIX a meados do século XX, quando viveu o Padre Cícero (1844-1934), os efeitos eram ainda mais desastrosos, dada a falta de equipamentos estruturais mínimos, como açudes, cisternas, adutoras, rodovias, estradas de ferro e um sistema de logística para a distribuição de água e mantimentos nos períodos mais críticos. Observando suas ações, é possível perceber que as várias secas, com todas as suas consequências, vivenciadas desde a infância pelo Padre Cícero, atuaram de modo marcante em sua estrutura psicológica e em seu imaginário, de maneira a influenciar suas ações sociais, políticas, econômicas e ambientais na região.
Padre Cícero sabia da importância e sentia a urgência de ações voltadas ao combate dos efeitos desse fenômeno natural e, ao mesmo tempo, social. Cícero aprendeu do jeito mais doloroso que era necessário encampar desde orações à construção de obras hídricas e assistencialistas, além de ações políticas e ensinamentos de convivência com o semiárido. O fenômeno devastador da seca, que insistia em ceifar a vida de milhares de pessoas quando ocorria, sempre levara consigo alguém do seio familiar do sacerdote.
Entre 1877 e 1879, o Nordeste viveu uma das maiores e mais dramáticas secas da história. Nem mesmo o oásis caririense escapou. Como de costume, as doenças vinham a galope, na garupa da falta de água e de comida. Uma epidemia de varíola elevou o obituário do triênio, só na província do Ceará, à cifra assustadora de 180 mil almas, contra os poucos mais de 6 mil mortos em toda a década anterior. Cícero Romão, que na seca de 1862 perdera o pai para a cólera, aos 34 anos viveria nova e dolorosa tragédia pessoal: entre as vítimas da grande estiagem, estava sua irmã Maria Angélica, a filha mais nova de dona Quino. ‘Tenho tanto medo’, confessou Cícero em carta ao bispo, atribuindo o flagelo à fúria divina. ‘Nem se pode duvidar que tanta avareza, tanta impudicícia, tanto assassinato, tanto crime em escala nunca vista façam continuar o castigo e aparecer outros maiores’, previu. Não era só o sertão que agonizava. As notícias que chegavam de Fortaleza eram aterrorizadoras. A capital, que possuía cerca de 30 mil moradores, recebera 200 mil retirantes, arranchados em praça pública, em condições insalubres. A varíola aproveitou para atacar sem piedade. Em um único dia, 10 de dezembro de 1878, o cemitério da cidade recebeu, oficialmente, 1.004 corpos. ‘O número de mortos devia ser muito maior porque em torno da cidade, pelos matos e valados, inumavam-se cadáveres ou se deixava apodrecer insepultos’, testemunhou na época o médico historiador cearense barão de Studart. Na manhã seguinte àquele que ficaria conhecido como o Dia dos Mil Mortos, Fortaleza amanheceu com uma nuvem negra pairando sobre a cidade. Não era nenhum sinal de chuva: eram centenas de urubus que davam rasantes no céu. Lá em baixo, cães disputavam entre si restos de carne humana ( Lira Neto, 2007, p. 56).
Tendo vivenciado esses horrores, é mais do que natural que o misto de saberes adquiridos a partir da influência do meio social no qual se criou, de suas vivências e de seus estudos mais apurados e o acesso ao saber erudito adquirido no seminário, tenham cunhado um sincretismo de conhecimentos populares e científicos, que constituiu seu embasamento para suas ações políticas, ao chamar a atenção e cobrar do poder público e seus representantes uma maior atenção e cuidados para prevenir os efeitos e/ou socorrer a população cearense das consequências das secas periódicas que assolavam o Ceará e causavam, principalmente para a população mais pobre, muito penar. Tal afirmação pode ser constatada nas palavras do próprio sacerdote:
Só quem viu 1877 entre nós, pode avaliar o que seja o flagelo das secas nos sertões do Norte! É uma aflição os horrores da seca; parece que fica deserto o Ceará. Cada cearense deve ser uma trombeta na imprensa e em toda parte, gritando com toda força, pedindo socorro para o grande naufrágio do Ceará. Pode ser que esses governos, que têm dever de salvar os estados nas calamidades públicas, despertem este clamor e não queiram passar por assassinos, deixando morrer caprichosamente milhares de vidas que podiam salvar e não querem. Estamos certos que só a Providência nos dará remédios (Padre Cícero apud Walker, 2006, p. 15).
Além da posição política, destacam-se também seus aconselhamentos dados aos sertanejos voltados para uma convivência mais harmoniosa com o semiárido, apontando práticas de preservação do meio ambiente, além de técnicas de trabalho na agropecuária, bem mais acertadas para áreas sujeitas aos processos de degradação e desertificação, presentes em grande parte do nordeste brasileiro. A esse respeito, Walker aponta:
No Cariri, há mais de cem anos, quando ninguém falava em ecologia, o Padre Cícero – como extraordinário homem de vanguarda que foi –, se antecipava e ensinava preceitos ecológicos aos romeiros. Eram coisas simples, como ‘não derrubem o mato; não toquem fogo no roçado; deixem os animais viverem; não matem os passarinhos; utilizem as plantas medicinais’, mas que surtiam um grande efeito. Essa iniciativa de Padre Cícero, hoje largamente disseminada no Nordeste, foi elogiada por ecologistas de renome, como o professor J. Vasconcellos Sobrinho, no seu livro Catecismo de ecologia (Vozes, 1982), e Dr. Rubens Ricupero, ex-ministro do Meio Ambiente, o qual, em artigo publicado no jornal O Globo (19/01/94), disse que Padre Cícero ‘pregou em pleno sertão nordestino a palavra que hoje a consciência ambiental a duras penas começa a inscrever na nossa visão de mundo. Muito antes de que se realizasse a I Conferência Internacional sobre o Meio Ambiente, em Estocolmo, em 1972, ele teve essa percepção aguda de algo que constitui antes de tudo um interesse legítimo, identificado por quem está próximo da realidade (2006, p. 3).
Nesse sentido, destacam-se os seus onze preceitos ecológicos, que ensinava para os romeiros que visitavam Juazeiro, bem como para os que, decidindo permanecer nas proximidades da cidade, eram aconselhados pelo sacerdote a tornarem-se agricultores e, dentre outras culturas, alertava para a necessidade de se “plantar a mandioca-preta, conservar ela, porque, quando vier a seca, não acha o povo desprevenido” (Padre Cícero apud Walker, 2006, p. 31).
É importante ressaltar que Padre Cícero não deixou nenhuma obra escrita publicada. Por essa razão, buscou-se saber junto ao professor e pesquisador Daniel Walker, especialista em história do Juazeiro do Norte e sobre o Padre Cícero, as origens dos preceitos ecológicos do sacerdote. Walker esclareceu que os preceitos ecológicos, hoje amplamente difundidos, foram organizados pelo ecologista brasileiro Dr. Vasconcelos Sobrinho (professor, engenheiro agrônomo e um dos fundadores da Universidade Federal Rural de Pernambuco), com base nos conselhos que Padre Cícero dava aos sertanejos através de cartas. Walker afirma ainda que alguns desses conselhos eram dados durante as pregações diárias que o padre fazia aos romeiros em frente à sua casa, sendo retransmitidos pelo povo através da oralidade.
Em seus preceitos ecológicos, Padre Cícero fazia os seguintes alertas:
Não derrube o mato, nem mesmo um só pé de pau
Não toque fogo no roçado nem na Caatinga
Não cace mais e deixe os bichos viverem
Não crie o boi nem o bode soltos; faça cercados e deixe o pasto descansar para se refazer
Não plante em serra acima nem faça roçado em ladeira muito em pé; deixe o mato protegendo a terra para que a água não a arraste e não se perca a sua riqueza
Faça uma cisterna no oitão de sua casa para guardar água de chuva
Represe os riachos de cem em cem metros, ainda que seja com pedra solta
Plante cada dia pelo menos um pé de algaroba, de caju, de sabiá ou outra árvore qualquer, até que o sertão todo seja uma mata só
Aprenda a tirar proveito das plantas da Caatinga, como a maniçoba, a favela e a jurema; elas podem ajudar a conviver com a seca
Se o sertanejo obedecer a estes preceitos, a seca vai aos poucos se acabando, o gado melhorando e o povo terá sempre o que comer
Mas, se não obedecer, dentro de pouco tempo o sertão todo vai virar um deserto só.
Entendemos que foram a partir desses fundamentos que o Padre incentivou o trabalho coletivo temporário, em forma de mutirões, e o trabalho coletivo permanente, em forma de comunidades agrícolas. “Tornando-se conselheiro de uma crescente legião de fiéis, ameaçados pela seca, no sertão nordestino e por limitações materiais dela decorrentes, o Padre Cícero incentivava a orar e trabalhar” ( Araújo, 2005, p. 31).
Ao se formarem comunidades que se constituíram como territórios camponeses, envoltos em um misticismo religioso, é provável que os aconselhamentos do Padre Cícero para se orar e trabalhar, somados ao estímulo da união em mutirão e aos preceitos ecológicos que ensinava aos trabalhadores rurais, tenham se constituído na base estrutural na qual seus devotos seguidores passaram a desempenhar suas atividades produtivas em harmonia ecológica no ato de apropriação da natureza, imprimindo, assim, uma particularidade nos núcleos rurais espalhados pelo Cariri cearense, que ajudou a formar.
Mediante os desafios da seca, Padre Cícero incentivava os devotos ao trabalho de cultivar os campos, para evitar os 'horrores da fome', e à fé, dirigindo promessas ao santo para pedir chuva. Após a seca de 1877, no Juazeiro e no Cariri, o Padre Cícero se preocupava cada vez mais com a agricultura, solicitando junto aos governantes ações voltadas para tentar reverter o problema das estiagens prolongadas. Neste sentido, o Padre incentivou a criação de açudes, reservatórios de água, reflorestamento e abastecimento alimentar. Assim, a preocupação do Padre Cícero com a atividade agrícola, assim como o grande contingente de mão de obra que afluía ao Joaseiro, em busca de trabalho e a extensa quantidade de terras agricultáveis no topo da Chapada do Araripe, contribuíram para a formação de comunidades de pequenos agricultores (Araújo, 2005, p. 40).
Algumas dessas comunidades se perpetuam até os dias atuais, como a de Cacimbas, que se localiza no município de Jardim, no topo da Chapada do Araripe, e que ainda hoje abriga tradicionais coletores de pequi. Acredita-se que em muitas dessas comunidades, a organização, as práticas de trabalho, a oração e a convivência com o semiárido, estavam pautadas em conselhos proferidos pelo “Padrinho Cícero”.
Um exemplo dessas influências do sacerdote na organização das comunidades camponesas pode ser observado nas experiências realizadas no sítio Caldeirão, pelo beato José Lourenço e seus seguidores. O Caldeirão foi uma comunidade camponesa formada a partir de um pedido do Padre Cícero ao beato José Lourenço, um de seus devotos, detentor de importante carisma e liderança. Trabalhando de forma coletiva, a comunidade produzia quase tudo de que necessitava, sendo capaz de prover o sustento de sua população. Incompreendida e perseguida por membros das oligarquias fundiárias do Ceará, a comunidade foi destruída em 1936 por forças da polícia estadual cearense em uma ação que resultou na morte de 400 camponeses.
Os indícios apontam que no Caldeirão foram colocados em práticas os aconselhamentos de oração, trabalho e preservação ambientais tão difundidos pelo sacerdote de Juazeiro. Exemplo disso é o fato de que os camponeses do Caldeirão construíram açudes, fizeram represas no leito do riacho Caldeirão, intercalaram as culturas, possibilitando maior diversidade biológica, preservaram as áreas íngremes do terreno, entre outras práticas. Tais afirmações podem ser constatadas através das palavras do geógrafo Arlindo Siebra, em entrevista a Araújo:
‘Como é possível sustentar toda uma comunidade dependendo de um solo que tem restrições agrícolas? O grande mérito do beato foi exatamente este: ele soube utilizar os recursos e os ecossistemas do semiárido’, afirma o geógrafo Arlindo Siebra. Além do modus vivendi igualitário, o Caldeirão foi um exemplo ecológico para o N ordeste. Segundo Siebra, a comunidade construiu várias microbarragens e dois açudes. Faziam também um tipo de cisterna, que cobriam para evitar a evaporação, armazenando a água no subsolo. Outra característica importante frisada por Siebra era o não-desmatamento da "coroa da serra" – como são chamadas as partes mais altas da fazenda. Normalmente os agricultores trabalham com rotação de culturas, ou seja, queimam a vegetação para adubar o solo e depois plantam durante cerca de três anos. Posteriormente, abandonam a área – deixam a vegetação brotar de novo, o que chamam de ‘encapoeiramento’ – para repetir o processo após três ou cinco anos. A falta de espaço, porém, impedia José Lourenço de fazer as rotações. Segundo Siebra, o beato ‘só plantava abaixo da ‘coroa da serra’, e apenas em um trecho por ano, passando depois para outro. Como a cobertura vegetal da coroa permanecia intacta, quando chovia as sementes eram dispersadas de cima para baixo. Dessa maneira, utilizando a força da gravidade, a área encapoeirava mais rápido que um terreno plano’. Com esse manejo agrícola, somado à criação de peixes e de gado, as quase 2 mil bocas da irmandade não sentiam falta de comida (Araújo, 2005, p. 40).
Baseado nesses elementos norteadores, o beato e seus seguidores desempenharam de modo satisfatório suas atividades de produção agropecuária. Como se pode observar nas afirmações de Siebra, a utilização dos recursos naturais do ecossistema semiárido de maneira racional e harmônica possibilitou que a comunidade lograsse êxito em seu desenvolvimento, a partir de um modelo ambientalmente sustentável, que somado à força do trabalho coletivo, a partir dos mutirões, permitiu à comunidade enfrentar sem mortes, epidemia ou fome a severa seca ocorrida em 1932 e a alcançar qualidade de vida salutar, superior à dos padrões camponeses daquela época no sertão nordestino.
Passadas mais de sete décadas do fim do Caldeirão, esse modelo de organização e produção que a comunidade praticava, ao invés de se tornar obsoleto, requer maiores reflexões a seu respeito para que modos alternativos de convivência com o sertão semiárido possam ser repensados, fazendo um contraponto ao avanço de modelos de produção e apropriação desse espaço, que não levam em consideração suas peculiaridades e que aceleram os processos de degradação e desertificação, sobretudo na área do polígono das secas.
Nesse sentido, uma retomada dos conhecimentos tradicionais, com um olhar atento para as experiências e metodologias postas em prática no passado e que se mostraram propícias e exequíveis, emergem como alternativa viável para um melhor conviver com o semiárido. Diante desse cenário preocupante de seca, escassez, degradação e desertificação, aprender com o passado, observando os antigos conselhos ecológicos do Padre Cícero e a experiência da comunidade da Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, se mostra bastante pertinente.
Autor
Judson Jorge da Silva é graduado em geografia pela Universidade Regional do Cariri e mestre em geografia pela Universidade Federal do Ceará. É professor e coordenador do curso de geografia da Universidade Estadual do Piauí, campus São Raimundo Nonato. É também coordenador local do Plano Nacional de Formação de Professores da Educação Básica e pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Geografia do Interior do Piauí.
Referências Bibliográficas
Araújo, João Mauro. “Sopro de liberdade: a tragédia de uma utopia de igualdade e autossuficiência”. Problemas Brasileiros, São Paulo, nº 370, p. 38-43, jul/ago 2005.
Araújo, Maria de Lourdes. “A cidade do Padre Cícero: trabalho e fé”.Tese de doutorado em planejamento urbano e regional. Centro de Ciências Jurídicas e Aplicadas, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro 2005. 260 p.
Departamento Nacional de Produção Mineral. “Projeto avaliação hidrogeológica da bacia sedimentar do Araripe”. Recife: DNPM, 1996.
Neto, Lira. Padre Cícero: fé, poder e guerra no sertão. 1ºEd. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
Walker, Daniel. Padre Cícero: coletânea de textos. Juazeiro do Norte, 2006. Disponível em: . Acesso em: maio de 2013.