quinta-feira, 26 de abril de 2012

Padre Cícero: entrevista histórica ao jornal O POVO

Em 18 de fevereiro de 1931,  o então jornalista Paulo Sarasate, do jornal O POVO, de Fortaleza, conseguiu importante entrevista com o Padre Cícero, na época já com avançada idade. A entrevista é histórica, embora tenha sido conduzida de forma pouco respeitosa, sendo até motivo de gozação por parte do entrevistador, conforme se pode constatar durante a leitura. Abaixo publicamos a foto do jornal mostrando a publicação da entrevista e em seguida o texto é transcrito.

Os jornalistas Paulo Sarasate e Alpheu Aboim, que estiveram no interior do Estado, a serviço, desta folha, visitando há poucos dias Joaseiro, apanharam a seguinte entrevista com o Padre Cícero, escripta pelo primeiro, especialmente para O POVO:
Joaseiro, 12 (Via Postal) - Seriam precisamente 13 horas de hontem quando nos dirigimos à residência do Padre Cícero, com o intuito de entrevistá-lo para O POVO.
Transposta a grande praça em que se ergue, dominadora, a estatua do padre, dahí a alguns passos penetramos na travessa onde o mesmo reside, numa vasta casa, em companhia da beata Mocinha.
Era outro o ambiente. Inteiramente outro. Ao aproximar-se da residência do Padre Cícero, Joaseiro como se transforma subitamente. Toma outro aspecto. De cidade movimentada e alegre, empório comercial dos mais florescentes do sul do Estado, como se apresenta nas demais artérias públicas - transfigura-se ali, nas cercanias da mansão, patriarchal, num verdadeiro fóro de fanatismo. Não é mais a cidade clara e sorridente do Cariry, agitada pelo lufa-lufa quotidiano dos que trabalham: é o villarejo inculto e retardado, a nova e pacífica Canudos dos sertões nordestinos, com a figura tradiccionalmente discutida do padre e a ignorancia contristadora dos romeiros.
Defronte da casa e um pouco ao lado, quatro ou cinco tendas, armadas ao sol, recheadas de "santos, medalhas e rosários para vender", desafiavam o ambiente escuro com o berrante desencontrado das cores. Eram medalhas e santos de todas as qualidades, inclusive o "Santo do Joaseiro".
Na calçada ao longo das sete janellas e principalmente na porta que estava apinhada, cerca de quarenta romeiros aguardavam resignados a ocasião para elles benfazeja de avistarem-se com o Padre Cícero. Alguns esperavam de joelhos, resando, e um ou outro protestava contra a demora, especialmente uma mulherzinha nervosa, franzina, maltrapilha, que não se cansava de chamar pela beata, aos gritos, no anseio mystico de beijar as mãos milagrosas de "meu padrinho".
A beata Mocinha - lembre-se aqui num rápido parêntese - é a principal intermediária entre o padre e os romeiros. Sem a interferencia della, que tudo manda e tudo pode naquelle tecto, coisa alguma se consegue.

À Espera do Patriarcha 
Mal conformados com a atmosphera irrespirável e repugnante que foramos encontrar ali deplorando profundamente aquelle estado criminoso de retardamento mental, homens, mulheres e crianças mergulhados no mais revoltante estado, conseguimos a custo entrar na residencia de Padre Cícero.
Fizemo-nos anunciar por um porteiro e ficamos na saleta de entrada à espera do nosso homem. A beata Mocinha que ali estivera a conversar com umas romeiras, assustou-se com a nossa presença e esgueirou-se manhosamente pelo corredor, desaparecendo de uma vez. Trancou-se em seu quarto, o que nos informaram e não fosse a nossa argúcia, não teria sido vista mais tarde, com o cabello cortado à la home, e as vestes negras, tumularmente negras, a escutar por tras de uma porta a palestra que mantivemos com o patriarcha do Joaseiro. Enquanto este chegava, puzemo-nos a examinar a sala de visitas. Admirávamos os retratos da mãe do padre e de seu pae, já falecidos. Olhámos uma photographia do mesmo ao lado do ex-senador João Thomé passamos a vista por outros quadros e dali a segundo estamos conversando com 

Uma Contemporanea da Beata Maria de Araujo 
Era uma mulherzinha já idosa, cabellos brancos, fala arrastada. Disse-nos que assistira os milagres da tão controvertida Maria de Araujo e nos jurou a pés juntos que tinha visto certa vez uma hostia jorrar sangue, quando um sacerdote acabara de tomá-la nas mãos para depô-la nos lábios da beata.
"Vi esse facto com estes olhos que a terra há de comer", disse-nos por fim a nossa interlocutora, com uma segurança quase convincente.

Com o Padre Cícero 
Mais alguns minutos decorridos e lá se veio o padre à nossa presença. Pensávamos encontrá-lo abatido, dominado pelos 87 annos de idade que tem vivido, mas deparãmo-lo relativamente forte, andando ligeiro e falando apressado.
Abraçou-nos cordialmente, os lábios rasgados num riso franco e jovial, olhar prescrutador e conduziu-nos immediatamente a seu gabinete à direita do prédio.
- Padre Cícero - começámos geitosamente - somos do O POVO e queremos uma entrevista sua. Algumas palavras sobre o movimento brasileiro.
- "Não", respondeu-nos de prompto, com uma resolução que podia parecer definitiva, "Por óra não posso falar. Estou de resguardo..." 

Um Espectador dos Acontecimentos 
Rimos conjuntamente da pilheria e deixamos que elle prosseguisse.
"Eu agora sou apenas um espectador dos acontecimentos. Aprecio os factos e olho as coisas com uma grande vontade de que tudo se faça como eu desejo." 
E iniciando sem pressentir a entrevista que solicitaramos; 
"A futura Constituição, por exemplo, não deve ser athéa. O Brasil é uma nação catholica e precisa viver com Deus. Sou partidário da Egreja unida ao Estado, porque sou catholico, apostolico, romano, e me oriento pelo credo, que é o symbolo da Religião e da Fé. Deus é quem governa o mundo. Só o Creador é universal e absoluto."
Resolvemos cortar a digressão philosophica do padre, que prometia prolongar-se, e interpellámo-lo sobre o movimento revolucionário.
"É agora" - respondeu-nos com um desembaraço de phases que bastante nos admirou e que se fez sentir em toda a palestra - é agora o momento oportuno para se fazer um Brasil novo, com um futuro brilhante e cimentado em princípios divinos.
Como se vê, o Padre Cícero raramente se afasta da idéia de Deus. Toda a sua conversa, desenvolta e não raro brilhante, é pontilhada desse espírito religioso dessa quase obsecação theologica.
E assim continuou elle a falar cobre

O Movimento revolucionário

pe.cicero1


- "A Revolução foi uma intenção que Deus entregou aos brasileiros para se libertarem. (Nota: Padre Cícero refere-se ao movimento revolucionário de 1930, que reuniu mineiros, gaúchos e paraibanos e derrubou o então presidente Washington Luiz e levou Getúlio Vargas ao poder). Os homens põem e Deus dispõe. Os homens deram impulso à Revolução e Deus ordena que se faça um Brasil novo e grande, debaixo de princípios que sejam a manifestação da vontade do nosso povo. Eu desejo que os novos governantes sejam sobretudo administradores e não donos de uma grande fazenda, como vinha acontecendo até agora. Que a nação os faça, os eleja zeladores e defensores da Pátria e do povo e não senhores de uma senzala, para venderem-na aos pedaços, a quem mais dér."
Tudo isso o Padre Cícero ia dizendo pausadamente, medindo as palavras, mas com gestos largos e repetidos, extendendo e abrindo os braços, principalmente o esquerdo, que elle movimenta com mais freqüência, óra puxando o lenço, óra ageitando os óculos. Os óculos de tartaruga esverdeada com que procura aliviar-se da catarata impertinente que lhe annuvia a vista, enbranquecendo-lhe o azul brilhante dos olhos...

Juarez Távora 
- Que pensa de Juarez Távora? (Nota: Juarez Távora era então ministro do governo Getúlio Vargas, no qual esteve entre 1930 e 1933. Mais tarde, em 1964, Távora foi ministro de Castelo Branco. Como militar, participara desde 1922 de levantes contra o Governo Federal, inclusive a Coluna Prestes. Em 29, rompeu com Luis Carlos Prestes, depois que este assumiu sua adesão ao comunismo, e participou do bloco de sustentação da Revolução de 30)
- "É um homem distincto e bravo" - explicou vivamente quase a nos cortar a pergunta.
E insistiu, sempre dominado pela mania religiosa:
- "É um dos elementos que Deus destacou para fazer uma Pátria nova e feliz.
- Confia por inteiro na acção de Juarez?
- "Tanto assim não posso adentrar. Mas conheço sua família e a sei catholica. Sou até padrinho do Adhemar, irmão do Juarez, e da Benigna, irmã delle. Tive cuidados e vexames enormes quando elle vinha como um dos chefes da Revolução, em vinte e seis. Já desejava é que elle se salvasse, se desligasse della, para não morrer. Também me preocupei muito, naquelle tempo, com a sorte do dr. Távora, que esteve perseguido.
E passou o padre a contar a história de um positivo que mandara a Fortaleza, naquelles tempos sombrios da 2° Revolução, destinado exclusivamente a avisar ao actual interventor do Ceará que se retirasse do Brasil, porque do contrario seria preso.
- "Mandei até dizer-lhe - concluiu - que não se fiasse absolutamente na proteção de Moreirinha, que esta não valeria nada.

Vocês sabem melhor do que eu...
Qual seria a opinião do Padre Cícero Romão Batista sobre os governos depostos? A sua opinião de agora?
Atacamos o assumpto.
- Que pensa do sr. Washington Luiz e seu governo, padre?
- "Não penso nada. Não quero emittir juízo sobre quem já morreu." 
E prosseguindo, contou-nos sorridente que já estava até de amizade encerada com o Cattete succedendo o mesmo com relação aos srs. Julio Prestes e Matos Peixoto (Nota: o paulista Julio Prestes, apoiado pelo Governo Federal, disputou as eleições de 1930 contra Getúlio Vargas. E venceu. Mas o movimento de outubro de 30 impediu de assumir a presidência. Precisou pedir asilo ao Consulado da Inglaterra). Nunca lhes desejou mál nem o deseja agora, porque costuma mesmo pedir bençãos para todo mundo.
- "O que eu quero - disse-nos textualmente com aquella philosophia toda sua - é que os máus se convertam e vivam. Cada indivíduo seja bom e perfeito - e progrida.
Nada conseguiramos a respeito do sr. Washington. Seria conveniente tentar ainda a sua opinião sobre o sr. Peixoto? Arriscamos: - Que diz do governo Peixoto? (Nota: Matos Peixoto havia sido eleito presidente do Estado do Ceará em 1928).
- "Também não digo nada - replicou o nosso entrevistado. E explicou com um traço mal disfarçado de ironia: - Não digo nada porque vocês sabem melhor do que eu..."
A seguir, como alguém avançasse na roda que o casal Matos Peixoto era atheu, o Padre Cícero, satisfeito, vaidoso, procurou convencer-nos de que modificara o pensamento anti-religioso do ex-presidente e sua senhora, quando ambos visitaram o Joaseiro.

Getúlio e Epitácio 
Faltava ouvir o pensamento do padre sobre o chefe do governo provisório. Foi o que fizemos a seguir, para obter a seguinte resposta:
- "Desejava calar sobre o dr. Getúlio Vargas porque estamos muito longe. Más só tenho razões para julgá-lo um homem de bem. Já tive até relações com elle, por telegramas, quando era ministro da Fazenda e mesmo quando foi presidente do Rio Grande. Desejo-lhe, pois, muitas felicidades e digo isso sinceramente, muito sinceramente.
Conheciamos a admiração do padre pelo sr. Epitácio Pessoa e por isso não foi com surpresa que o ouvimos logo depois desfazer-se em elogios ao ex-presidente da República, um dos maiores homens do país segundo o seu modo de pensar.

Os Ministérios do Padre Cícero 
Muito loquaz, espantosamente loquaz, o patriarcha do Joazeiro tomara gosto pela palestra e não se cavala mais um segundo. Era uma verdadeira machina falante, a emitir opiniões sobre os mais variados motivos. E destarte, por sua conta, atacou a questão dos ministérios.
- "Em vez de se salvar o país com impostos e empréstimos (o Padre Cícero é um ardoroso inimigo dos empréstimos e das concessões estrangeiras em vez disso, os dirigentes da pátria devem criar um novo ministério, destinado especialmente a desenvolver as nossas riquezas naturaes, as grandes riquezas que Deus nos deu. Faça-se, pois, um Ministério das Minas e Florestas. É assim que se deve crescer e não vendendo o país aos estrangeiros. Elles comem as bananas e nos atiram as cascas.
Outra impressionante faceta do espírito do Padre Cícero é o seu apegado ao amôr pelos acontecimentos históricos e pelo que se passa nos países de além-mar. Em seu gabinete, pouco abaixo de uma photographia sua, ainda seminarista, vê-se, colorida, uma estampa intitulada "Pantheon universéle des personages más celebres". No decorrer das palestras, de vez em quando elle cita um facto histórico, relembra outro, evoca um heroismo, de modo a mostrar erudição no assumpto.
E nestas condições, para defender a thése do Ministério das Minas, foi parar connosco na longinqua Persia.
- "Calculem - accentuou-nos - que um homem semi barbaro, como o imperador da Persia, tratou do assumpto, em seu país, e organizou várias commissões para explorar as minas daquella região. Imitemos, pois, o imperador dos persas".
Concordámos habilmente com a maioria de pensar do velho sacerdote - elle proseguiu: 
- "E, se fôr possivel, criamos também um Ministério de Culto, Ensino, Sciencia, Hygiene e Bons Costumes, para melhor realizar a reconstrução moral do país. Feito isso, eu ficaria satisfeito, certo de que tudo estava nos eixos."

A Punição dos Culpados 
- "Qual a sua opinião sobre o Tribunal Revolucionário?"
- "Eu me calo a respeito, porque não conheço substancialmente os seus princípios de existência.
- Mas acha que os culpados devam ser punidos?
- "Nessa matéria - replicou o padre, sustentando os óculos - nessa matéria eu não sou professor certo. Theoricamente, em princípio, sou pela punição. Mas na prática, a meu ver, as cousas não saem certas. E a condemnar inocentes é preferivel perdoar, que é sempre melhor e mais agradável.

O Imposto territorial 
Tratando-se, no momento, de assumptos políticos exclusivamente, há de parecer estranho aos leitores o sub-título acima: o imposto territorial. A verdade, no entanto, é que, sem querermos, fomos forçados a ouvir uma longa exposição do Padre Cícero a respeito dessa tributação, que elle considera iniqua, odiosa, injustificável. Tem uma verdadeira ogerisa ao referido imposto e está obsecado, profundamente obsecado pela idéia de combatê-lo.
E é somente por isso, unicamente pela vontade do entrevistado, que se tóca aqui na matéria tributária em apreço.

O Communismo, o Apocal'ypse e o Fim do Mundo 
Para encerrar a palestra, que já se prolongava, interrogámos o thaumaturgo do Joaseiro sobre o communismo. E foi com extraordinária vontade de rir que lhe escutámos a opinião.
- "O communismo - afirmou espontaneamente o Padre Cícero - foi fundado pelo demonio. Lucifer é o seu nome e a disseminação de sua doutrina é a guerra do diabo contra Deus. Conheço o communismo e sei que é diabólico. É a continuação da guerra dos anjos máus contra o Creador e seus filhos.
Tomou alento e prosseguiu mais pathetico:
- "Conheço a Russia desde a minha meninice e sei que ella é um campo imenso de assassinatos, commetidos por governos que querem destruir moral e mentalmente a nação. Lenine foi um sargento do exercito e nada mais. Era, além disso, um judeu pelo espírito e pelo sangue. Só os seus discipulos consideram-no um grande homem. Os espíritos sensatos não pensam desse modo. O partido de Lenine é o partido do Anti-Christo, dito e annunciado por S. João, no Apocalypse. E chegar a governar o mundo, quando faltarem três anos para o incendio final, porque tudo isso está escrito nos livros santos...

A Vaidade do Padre Cícero 
Estava terminada a entrevista. Convidamos, então, o Padre Cícero pra se deixar photographar ao nosso lado. Elle accedeu de bom grado, alegremente, mas insistiu numa coisa: fazer a barba e mudar a batina para não apparecer velho na photographia...

O Retrato retirado 
Dahi a pouco, ao sairmos da casa do bondoso padre, ouvimo-lo accentuar na despedida, como se alguém lá dentro tivesse aconselhado quando elle foi mudar a batina: - "Olhem bem: eu não sou inimigo do Peixoto!" 
Um dos presentes, porém, chegou-se-nos ao ouvido e apontando para a sala de visitas adentrou-se maldosamente que não estava mais ali, como de costume, o retrato do presidente deposto...

"Eu também sou rico"
Saímos. À porta era maior o número de romeiros. A onda avolumara-se pouco a pouco, para augmentar, talvez, a nossa desolação ante aquelle ambiente asphyxiante de miseria e fanatismo.
E um homem palido, barba crescida, immundo e asqueroso, revoltado por não ter merecido ainda o favor de ser recebido pelo "padrinho", atirou à nossa passagem estas palavras ironicas e morzades humanamente philosophicas:
- "Deixem-me entrar que eu também sou rico! Eu também sou rico!"

Do Crato e Juazeiro
Padre Cícero nasceu na Vila Real do Crato, no dia 24 de março de 1844. Decidiu tornar-se padre já aos 12 anos, quando fez votos de castidade. Estudou no colégio Padre Rolim, em Cajazeiras (PB) e, depois, no Seminário da Prainha, em Fortaleza, onde se ordenou em novembro de 1870, aos 26 anos. Dois anos depois, fixou residência no então povoado de Juazeiro do Norte. 

Líder político
Durante boa parte de sua vida, Padre Cícero foi extremamente influente não somente no plano religioso, mas também nas suas concepções sobre política e economia. Por aliar-se às forças ditas conservadoras do Estado, o "Santo de Juazeiro" foi muitas vezes chamado de coronel. Líder político da região do Cariri e do restante do Estado, o sacerdote foi eleito prefeito de Juazeiro, deputado federal e vice-presidente do Ceará, cargos que não assumiu "para não abandonar os fiéis".

Sinal de Deus
Foi a partir dos fatos extraordinários de 1889, quando a hóstia teria se transformado em sangue no instante da comunhão da beata Maria de Araújo, que a legenda se cristalizou de vez. O milagre potencializou o mito. Os desvalidos foram em massa para Juazeiro do Norte. Na opinião da Igreja Oficial, o milagre seria uma farsa. Porém, na visão popular, aquilo era um sinal de Deus. A figura do mito tornava-se irreversível. 

"Padim Cícero"
Padre Cícero foi padrinho, amigo e protetor de Lampeão. Em 1926, providenciou para que Lampeão fosse nomeado capitão pelas autoridades federais, com o objetivo de combater a Coluna Prestes. Os cangaceiros, sabe-se, tinham como forte marca a religiosidade. 

Floro Bartolomeu
Para muitos, Padre Cícero tinha o seu alter-ego: Floro Bartolomeu, apelidado de "Satanás de Juazeiro". Implacável com seus inimigos, Floro ganhou a confiança do sacerdote e tornou-se seu mentor para assuntos políticos.

Sedição de Juazeiro
Padre Cícero foi uma das figuras centrais de um movimento no Ceará chamado "Sedição de Juazeiro". Com o pretexto de acabar com o fanatismo e o banditismo no Cariri, o então presidente do Estado, Franco Rabelo, entrou em rota de colisão com Padre Cícero. Foi entre 1913 e1914. Tropas enviadas por Franco Rabelo ao Crato tentaram invadir Juazeiro do Norte, em combates que duraram um mês. Juazeiro resistiu com as tropas formadas por beatos e cangaceiros fiéis a Padre Cícero, comandadadas por Floro Bartolomeu. O "Batalhão Patriótico", como ficou conhecido, chegou a Fortaleza em março de 1914 e derrubou o governo de Franco Rabelo.

Juarez Távora era então ministro do governo Getúlio Vargas, no qual esteve entre 1930 e 1933. Mais terde, em 1964, Távora foi ministro de Castelo Branco. Como militar, participara desde 1922, de levantes contra o Governo Federal, inclusive Coluna Prestes. Em 29, rompeu com Luís Carlos Prestes, depois que este assumiu sua adesão ao comunismo, e participou do bloco de sustentação da Revolução de 30.
O Paulista Júlio Prestes, apoiado pelo Governo Federal, disputou as eleições de 1930 contra Getúlio Vargas. E venceu. Mas o movimento de outubro de 1930 o impediu de assumir a presidêmcia. Precisou pedir asilo ao consulado da Inglaterra.
Matos Peixoto foi presidente do Estado do Ceará entre 1928 e 1930.
O coronel Alpheu Aboim, o jornalista Alpheu Aboim, Padre Cícero e Paulo Sarasate: barba feita para não parecer velho
O coronel Alpheu Aboim, o jornalista Tiago Otacílio de Alpheu, Padre Cícero e Paulo Sarasate: barba feita para não parecer velhoArquivo O Povo

segunda-feira, 23 de abril de 2012

JUAZEIRO - Pedro Nunes Filho*

Sombra acolhedora daquele Juazeiro, onde paravam almocreves carregando em suas malas de alcáceres do Reino disputados bens de consumo para suprir necessidades de sertões sem fim. Em suas andanças de mercadores, além de tecidos, calçados, ferragens e porcelanas, levavam e traziam notícias de terras distantes, histórias fantásticas e assustadoras, que somente sabem contar, homens de pernas caminhadeiras, acostumados vencer lonjuras, capazes de suportar os rigores do clima e enfrentar os perigos do mundo-sertão. 

Juazeiro frondoso, aragem do bem transformado em ponto de rancho de caminhantes sem pouso, sem morada e sem destino, desbravadores de terras ignotas, vendedores de bens, de esperança e de sonhos. 

Olhos fixos no beiço do horizonte, em vez de fadiga, incansável fome de estradas sem fim. 

Em noites geladas, fogueiras acesas, rodas de prosa, falação de aconteceres da vida diária e dolentes cantares, alimentando triste saudade de amores distantes. 

Chapéus de palha e roupas brancas tecidas em algodão protegiam-lhes a tez do sol abrasador, derramando um canhão de chamas sobre a terra. 

Em pontos de pouso, carne seca, queijo, farinha e rapadura. Para mitigar sede inclemente, fontes de águas cristalinas jorravam da Serra do Araripe, feito fossem miraculosos fios de prata. 

O passo seguro da burra-madrinha, enfeitada com campa-tinideira e atenta aos estalos dos relhos, guiava o comboio de burros-tropeiros, subindo ladeiras, descendo escarpas, vencendo lonjuras. 

Um dia, por conta de um sonho, o ponto de rancho virou povoado. Depois, o arruado, por leis do Estado, em 22 de julho de 1911, passou a ser vila e a vila, por gosto do povo, um Santo Lugar. 

Trincheira de resistência, cidadela de sonhos, fronteira de esperança. Meca de romeiros, porta aberta aos despossuídos e descamisados da vida. Refúgio, onde potentes homens de guerra, pacificados, quedavam seus canos de fogo e sementes de morte aos pés dos altares. Mulheres faladas aprendiam fazeres e mudavam de vida. Penitentes sofridos em busca de luz. Leprosos, aleijados, feridentos, cegos e todo tipo de criaturas miseráveis e fedorentas chegavam em magotes de terras distantes. Reduto de Cícero, padrinho dos excluídos, incentivador do trabalho, conselheiro do bem, promotor do progresso, arauto da esperança, reformador de consciências, construtor da fé e amigo dos pobres. 

Condenado por cânones injustos, humilde curvou-se. Findou elevado aos altares do povo, não por milagres, mas pela ação de transformar ócio, em trabalho, miséria, em dignidade, abismos, em luz, descrença, em fervor, discórdia, em harmonia, pobreza, em progresso. 

ISSO TUDO, pelos séculos em fim, amém! 

*Pedro Nunes, residente em Recife, é advogado e escritor, autor de vários livros entre os quais Guerreiro togado, que tem um capítulo sobre o Padre Cícero. .  
pnunesfilho@yahoo.com.br

sábado, 21 de abril de 2012

Bastam dois vinténs de chuva

Daniel:
Achei este texto muito interessante que fala do Padre Cícero e de sua fama de milagreiro. Não sei se você já conhece, mas como tem o blog, achei que seria interessante publicá-lo.

Tostão de chuva

Quem é Antônio Jerônimo? É o sitiante
Que mora no Fundão
Numa biboca pobre. É pobre. Dantes
Inda a coisa ia indo e ele possuía
Um cavalo cardão.
Mas a seca batera no roçado...
Vai, Antônio Jerônimo um belo dia
Só por debique de desabusado
Falou assim: "Pois que nosso padim
Pade Ciço que é milagreiro, contam,
Me mande um tostão de chuva pra mim!"
Pois então nosso "padim" padre Cícero
Coçou a barba, matutando, e disse:
"Pros outros mando muita chuva não,
Só dois vinténs. Mas pra Antônio Jerônimo
Vou mandar um tostão".
(...) No Fundão veio uma trovoada enorme
Que num átimo virou tudo em lagoa.

Texto enviado por Gilvany M. F. Ferreira

Nota do editor:
Gilvany, existe outra versão desse fato a qual é contada no livro Milagres e previsões de Padre Cícero, do meu pai, Zeca Marques, cuja transcrição segue abaixo:

O senhor João Farias de Melo, cidadão de caráter, pai do senhor Geraldo Farias de Melo, respeitado comerciante de joias em nossa cidade, contou-me que na Zona da Mata, no Estado de Alagoas, no ano de 1916, morava um proprietário de terra. Na frente de sua residência, na beira da estrada, tinha uma grande árvore frondosa onde os passageiros debaixo dela descansavam e pernoitavam. Chegaram dois romeiros que viajavam para Juazeiro a fim visitar o Padre Cícero. Depois que eles fizeram sua primeira refeição (rapadura com farinha) e descansaram, foram à casa-grande pedir água para abastecer sua cabaça e prosseguir viagem. Chegando lá, cumprimentaram o dono da casa e pediram a água desejada. O dono da casa perguntou se eles eram viajantes ou andavam procurando trabalho. "Não, respondeu um deles, nós somos romeiros e vamos pra Juazeiro visitar nosso Padrim Cícero".
"Nosso, não", respondeu o dono da casa, eu não sou afilhado e nem conhecido de protetor de cangaceiro. Vá pedir a seu padrim".
"Sim senhor, eu vou mesmo, ele é quem tem água pra dá a todos nos", concluiu o ro-meiro.
"Pois então", disse o dono da casa, metendo a mão no bolso e tirando um tostão (100 reis), "se ele tem água pra dá, diga a seu padrinho que mande um tostão de chuva pra encher o meu açude".
"Sim senhor, respondeu o o romeiro,eu entrego e dou também o seu recado".
Quando os dois romeiros chegaram em Juazeiro, ficaram no rancho de Lourencinho. No dia seguinte, Lourencinho levou os dois  à presença do Padre Cícero. Os dois romeiros pediram bênção, apresentaram as imagens para serem bentas entregaram algumas cartas de seus familiares e conhecidos. Depois de uma pausa o Padre Cícero perguntou ao romeiro:
"Você não está esquecido de mais alguma coisa?"
“Não, meu padrim, é que eu queria entregar uma encomenda, em reservado".
"Nao", respondeu o Padre Cícero faça a entrega agora mesmo".
"Pois bem, eu e meu companheiro fomos pedir água para encher nossa cabaça de via-gem e o dono da casa disse que não dava água a quem não tem o que fazer; e disse mais: vá pedir água a seu padrim e ate chamou meu padrim de protetor de cangaceiro. Eu respondi a ele: "Eu vou mesmo, só ele é quem tem água pra dá a todos nós. Então ele mandou esse tostão para o senhor mandar chuva para encher o açude dele".
"O senhor Antônio", disse o Padre Cícero, metendo a mão no bolso da batina, é “um menino grande” (os dois romeiros ficaram admirados, porque até então não sabiam ainda o nome do homem da casa-grande). Padre Cícero tirou três vinténs e deu ao portador, e recomendou: "Entregue ao senhor Antônio e diga a ele que bastam dois vinténs de chuva".
De volta quando os dois romeiros pisaram nas terras do senhor Antônio, notaram que ali havia dado uma grande chuva. Chegando a casa-grande foram recebidos pela dona da casa e disseram a ela:
"Eu quero entregar uma encomenda e dá um recado a seu marido que meu padrim Cícero do Juazeiro mandou".
"Eu recebo", disse a dona de casa, Antônio está muito nervoso e arrependido de ter zombado do Padre Cícero. A chuva que deu aqui foi tão grande, que além de arrombar a parede do açude, fez muito estrago. Estamos de viagem marcada. Vamos pra Juazeiro se confessar com o Padre Cícero".

quinta-feira, 5 de abril de 2012

O PADRE CÍCERO E A EDUCAÇÃO EM JUAZEIRO DO NORTE - Por Alacoque Bezerra

A princípio era a grande Fazenda Tabuleiro Grande, onde um velho Brigadeiro extasiava-se ao contemplar o verde da paisagem e o seu rebanho pastando tranquilamente na imensidão da fartura no capinzal florescente, e a beleza do céu, infinito, que ofuscava a visão, tornando tudo maravilhosamente belo.
Depois uma capelinha, a imagem de Nossa Senhora das Dores, e três juazeiros, em frente à mesma, que constituíam o repouso refrescante dos feirantes que vinham de outras localidades.
Foi quando um sacerdote veio celebrar uma missa do Natal, que teve início toda a vida de Juazeiro, minha terra natal.
Esse Sacerdote, que, ao escrever seu nome, elevo aos céus os olhos, pedindo-lhe sua proteção, era o Padre Cícero Romão Batista.
Juazeiro é a representação viva do Nordeste brasileiro. Foi injustiçado no seu início e adolescência, mas vistoriando o presente, apesar dos seus grandes problemas.
Fatos de natureza estranha, de ordem psicológica, abriram caminho para esta terra indomável, solidária e generosa, que se ufana de ser o Santuário do Nordeste, com a fé do povo e abrigo dos seus romeiros.
Por que no Ceará, somente Juazeiro representava para aquela gente a esperança, o lenitivo de males irremediáveis do espírito e corpo?
Lá estava à espera dos pobres, dos miseráveis, dos desesperados, um virtuoso sacerdote, o Padre Cícero, cujos episódios religiosos envolveram sua personalidade em um halo de crendices e lendas.
Não se pode negar que muitos lá chegaram com a alma povoada de angústia, sofrimento e desespero. E encontraram tranquilamente, amor e perdão. A preocupação do grande levita era abrangente demais. Preocupava-se acima de tudo com a juventude, abrindo-lhe escolas para o desenvolvimento espiritual, sua maior riqueza.
É ela, a educação, que firma o desenvolvimento integral do homem. Educar integralmente é deixá-lo em plenitude, é prepará-lo para a vida, onde a pureza dos sentimentos se confunda com o azul imenso que carrega nossa visão ao vislumbrarmos o horizonte.
O precursor da nossa educação foi aquele que comandou nossa cidade com o coração.  Cada escola que criava, ou fundava, era facho luminoso numa cidade que crescia sob suas bênçãos e anseios.
Assim, foi que Zé Marrocos iniciou sua tarefa de professor. A professora Izabel da Luz tinha todas as credenciais de Educadora, dada a sua maneira de conduzir e conhecer a criança.
Para as crianças órfãs e abandonadas, fundou o Orfanato Jesus Maria José, para ampará-las, dando-lhes uma educação apropriada, conforto material e espiritual.
Ambientou toda a cidade com escolas. E para continuísmo da sua vocação e desejo perene, doou a metade da sua fortuna à Ordem Salesiana, educadora por princípio, para que, após sua morte, fossem fundados aqui Colégios Salesianos para meninos e meninas com lº e 2º graus completos.
Depois, com sua ajuda, foram construídos o grupo Escolar Padre Cícero, Escola Normal Rural e várias unidades escolares. Após essas, surgiram unidades de 1º e 2º graus completos como Ginásio Municipal Xavier de Oliveira, Maria Amélia Bezerra, José Bezerra de Menezes, Colégio de 2º Grau Governador Adauto Bezerra, Ginásio Polivalente Presidente Geisel e muitas outras na zona rural.
Hoje a escolaridade atende a 90% do alunado carente. Tudo isso com a anuência mesmo do alto, onde habita nosso grande levita. Depois, com a grande quantidade de escolas, e sendo Juazeiro um centro populacional emergente, foi criada a 5ª Delegacia Regional de Educação, sediada aqui, com abrangência de 15 municípios.
Sendo eu a 1ª Delegada, pude ver e sentir de perto como é essencialmente vocacional a arte de educar. Educar é, portanto, a arte de estimular o esforço máximo dentro das possibilidades de cada um. O esforço intenso traz contentamento consigo mesmo, e a euforia faz recomeçar o esforço.
Em nossa vida, as lembranças que rebrilham cintilantes são os momentos de inteira e apaixonada aplicação de nossas energias, os momentos de superação. Se o menino é inteligente, não podemos aceitar trabalho medíocre; seria favorecer o subdesenvolvimento.
Cultivar ao máximo as capacidades pessoais leva o indivíduo à criação e à renovação, dando-lhe gosto e meios para determinar progresso científico e social. Por um lado, o educador deve dar tudo quanto a criança precisa; carinho e firmeza, ambiente de compreensão e harmonia, amor, pois o amor é mola mestra de toda força educativa. Deve também dar meios materiais suficientes para suas atividades variadas, presença não só do corpo, mas de participação da alma.
Por outro, o educador deve saber o que pode receber: boa vontade e mentalidade de servir para com os outros, capacidade de superar a contrariedade, o tédio, de aceitar o sacrifício como meio de crescimento, iniciativas no sentido de auto-suficiência; desejo intenso de realizações significativas, elaboração de uma escala de valores.
Os pais esperam demais ou de menos dos seus filhos. Compete ao professor explicar, claramente, o que se tem direito de esperar de cada. Eis a grande tarefa do professor: é se basear nessa filosofia sã - "Um grande impossível se divide em uma série de pequenos possíveis, e só não erra quem nunca experimen¬tou fazer coisas difíceis!"
Aqui está uma pequena síntese do que foi o Padre Cícero no setor educacional da nossa cidade e minha pequena participação no seu conteúdo humano social.

AUTORA. Alacoque Bezerra de Menezes, filha de tradicional família juazeirense, professora, escritora, primeira senadora cearense.