Introdução
No dia 4 de outubro de 1911, o recém-criado município de Juazeiro, Ceará, foi sede de dois grandes eventos políticos: a posse de Padre Cícero Romão Baptista no cargo de intendente (atualmente se diz prefeito) e a realização de uma assembleia ou sessão política para assinatura de um controvertido documento que passou à história com o nome de Pacto dos Coronéis. O referido documento também foi chamado de Pacto de paz, Pacto de harmonia política, Aliança política, Conferência política, Pacto de Haya-mirim e ainda Artigos de fé política.
Quando se fala no nome do Padre Cícero, a figura que realça em primeiro lugar é a de santo dos nordestinos, pois é como tal que ele é mais conhecido. Entretanto, existe em sua biografia um forte peso como figura política, embora isto seja mais conhecido e estudado apenas pelos seus pesquisadores. Aqueles que se consideram seus devotos, pouca ou nenhuma importância dão ao fato, porquanto para eles o que importa mesmo é o homem santo capaz de fazer milagres, o protetor nas horas das aflições. E foi assim que ele conseguiu uma grande legião de devotos. Como político fez muitos desafetos.
Mas de uns tempos para cá, sua vida política começou a ser dissecada pelos cientistas sociais e a partir da publicação dos primeiros textos, uma nova legião de admiradores surgiu.
Assim, a dicotomia envolvendo o santo e o político passou a ter terreno próprio e essas duas vertentes, indissolúveis e complementares, coexistem a despeito dos pareceres positivos de uns e negativos de outros.
Como signatário do Pacto dos Coronéis, Padre Cícero consolidou sua vida política, transformando-se na maior liderança do interior cearense. Porém, se por um lado isto lhe deu uma indiscutível força de mando, por outro lado arranhou profundamente sua biografia perante a sua igreja, que já o tinha na conta de embusteiro e doravante passou a tê-lo também como um coronel, certamente uma nódoa na sua apregoada santidade.
Por isso, é muito importante estudar essa particularidade da sua vida a qual já rendeu farta bibliografia e não para de crescer. Neste contexto, o objetivo principal deste trabalho é fazer uma análise das implicações decorrentes da assinatura do Padre Cícero no Pacto dos Coronéis, conforme as opiniões emitidas por escritores que estudaram o assunto em seus mais variados aspectos.
Para melhor compreensão do tema é feita inicialmente a transcrição da ata do histórico evento e a partir daí tem início a análise que define a importância do Pacto dos Coronéis na história política do Padre Cícero. No final é apresentada uma galeria com fotos de alguns dos coronéis que tiveram ligação com o famigerado evento.
O que é coronelismo
Até o final do século XIX, esteve em vigor no Brasil, um sistema conhecido popularmente por coronelismo, cuja política era controlada e liderada pelos ricos fazendeiros então denominados de coronéis.
No interior cearense, mais particularmente no Cariri, o coronelismo se caracterizava pela prática abusiva de duas irregularidades: o voto de cabresto e a fraude eleitoral.
Na Velha República, o sistema eleitoral vigente era bastante vulnerável à manipulação. Por isso, os coronéis poderosos compravam votos para seus candidatos ou então os permutavam por bens materiais. Como o voto era aberto (não havia ainda o sistema de urnas), os eleitores se sentiam coagidos e para evitar represálias não havia outro jeito senão votar no candidato indicado pelos coronéis. As regiões sobre as quais os coronéis exerciam poder de mando político ficaram conhecidas como “currais eleitorais”.
Entre as fraudes eleitorais praticadas pelos coronéis caririenses estavam o costume de alterar votos, sumir com urnas e o uso abusivo do chamado voto fantasma, o qual consistia em falsificar documentos para que eleitores pudessem votar várias vezes em prol de determinado candidato. Era comum inclusive o voto de pessoas mortas.
Fim do coronelismo
O coronelismo em seu formato original começou a ser extinto com a chegada de Getúlio Vargas ao poder, como resultado da Revolução de 1930. Em algumas regiões do Brasil desapareceu completamente, mas em outras o coronelismo continuou mais algum tempo, embora com menos intensidade e adaptado a uma nova realidade. A compra de votos continua até hoje. Mas os atuais chefes políticos, mesmo sendo grandes latifundiários, não são mais chamados de coronéis.
Padre Cícero pode ser chamado de coronel?
Por ser dono de várias propriedades rurais (embora tenha deixado tudo para a Igreja) e poder para decidir uma eleição, Padre Cícero é considerado por muitos escritores como tendo sido um coronel. Mas a pecha de coronel, no sentido como o termo é usado e entendido no Nordeste, não se coaduna com o comportamento e a personalidade do Padre Cícero. Ninguém conhece registro da existência de armas em sua residência ou de capangas a sua disposição, coisas muito comuns aos coronéis de que fala a literatura.
Entretanto, até hoje, não existe consenso com respeito a Padre Cícero ser ou não considerado como um coronel. As opiniões emitidas pelos estudiosos são muito variadas e dicotômicas.
Vejamos algumas:
Maria de Lourdes M. Janotti, escritora: "Padre Cícero foi o mais célebre de todos os coronéis".
José Fábio Barbosa da Silva, professor e escritor: "Padre Cícero também era o coronel dono de imensa força política que passou a representar os romeiros, quando Juazeiro se tornou independente. O Padre Cícero também possuía o status mais elevado, mais alto que o dos coronéis tradicionais".
Moisés Duarte, evangélico: “Padre Cícero era amigo do peito de vários latifundiários da região, conhecidos como "os coronéis". Esses senhores ilustres eram opressores dos pobres, marginalizavam os sertanejos, excluindo-os do direito à saúde, aos alimentos e até à vida. Pasme, o Padim Ciço pertencia a essa espécie de liga de coronéis do Ceará e a defendia”.
Rui Facó, jornalista: "Por que o Padre Cícero desfrutando de enorme popularidade, dispondo de tudo quanto fazia de alguém um coronel, por que não seria ele um coronel? Apenas porque vestia batina, ordenara-se padre, fazia milagres? Na verdade, nada diferenciava o Padre Cícero Romão Batista de qualquer dos latifundiários da zona. Utilizou, e em grande escala, os mesmos métodos familiares àqueles, como dar abrigo a capangas e cangaceiros e aproveitá-los ou permitir que outrem os aproveitassem para a consecução de objetivos políticos que também eram os seus".
José Boaventura de Sousa, historiador e professor: "Padre Cícero foi um coronel, mas um coronel diferente da conotação que a sociologia aponta. Não foi um coronel explorador, foi um coronel porque todos o procuravam como um líder".
Francisco Régis Lopes Ramos, historiador e escritor: "Padre Cícero alia-se aos coronéis, mas não se torna um deles. Suas atitudes são de apadrinhamento, de um protetor dos desclassificados, de um conselheiro e não de um político ou coronel".
Neri Feitosa, sacerdote e escritor: "Ele não tinha patente militar nem da Guarda Nacional. Ninguém o chamou oralmente de coronel. Por escrito, deram-lhe este epíteto por hipérbole e por analogia".
Marcelo Camurça, historiador: “No meu modo de ver o Padre Cícero se relacionou com as oligarquias, transitou na sociedade política, se compôs com os setores dominantes, tanto pela sua condição de sacerdote letrado, um intelectual tradicional, e esta condição o estimulava qual outros padres no Império e na República a ter uma projeção social, quanto pela vontade de ajudar o seu povo, de levar adiante o seu projeto de manter de pé a comunidade do Juazeiro, pela via da conciliação tão marcante na sua visão de mundo. Porém, o Padre Cícero nunca abriu mão de sua identidade sacra, do seu papel de guia religioso, de líder espiritual, para se tornar um político profissional, tampouco abriu mão da mística do "milagre" e de sua visão messiânica, simbólica do catolicismo popular, daquele primeiro sonho que teve quando Cristo encarregou-o de cuidar do Juazeiro e de seu povo. Este sem dúvida não é o perfil de um "Coronel" latifundiário ou de um político das classes dominantes”.
Ata do Pacto dos Coronéis
“Aos quatro dias do mês de outubro do ano de mil novecentos e onze, nesta vila de Juazeiro do Padre Cícero, município do mesmo nome, Estado do Ceará, no paço da Câmara Municipal, compareceram à uma hora da tarde os seguintes chefes políticos: coronel Antônio Joaquim de Santana, chefe do município de Missão Velha; coronel Antônio Luís Alves Pequeno, chefe do município do Crato; reverendo Padre Cícero Romão Batista, chefe do município do Juazeiro; coronel Pedro Silvino de Alencar, chefe do município de Araripe; coronel Romão Pereira Filgueiras Sampaio, chefe do município de Jardim; coronel Roque Pereira de Alencar, chefe do município de Santana do Cariri; coronel Antônio Mendes Bezerra, chefe do município de Assaré; coronel Antônio Correia Lima, chefe do município de Várzea Alegre; coronel Raimundo Bento de Sousa Baleco, chefe do município de Campos Sales; reverendo padre Augusto Barbosa de Menezes, chefe do município de S. Pedro do Cariri; coronel Cândido Ribeiro Campos, chefe do município de Aurora; coronel Domingos Leite Furtado, chefe do município de Milagres, representado pelos ilustres cidadãos, coronel Manuel Furtado de Figueiredo e major José Inácio de Sousa; coronel Raimundo Cardoso dos Santos, chefe do município de Porteiras, representado pelo reverendo Padre Cícero Romão Batista; coronel Gustavo Augusto de Lima, chefe do município de Lavras da Mangabeira, representado por seu filho João Augusto de Lima; coronel João Raimundo de Macedo, chefe do município de Barbalha, representado por seu filho major José Raimundo de Macedo e pelo juiz de direito daquela comarca, doutor Arnulfo Lins e Silva; coronel Joaquim Fernandes de Oliveira, chefe do município de Quixará, representado pelo ilustre cidadão major José Alves Pimentel; e o coronel Inácio de Lucena, chefe do município de Brejo Santo, representado pelo coronel Antônio Joaquim de Santana. A convite deste que, assumindo a presidência da magna sessão, logo deixou, ocupando-a o reverendo Padre Cícero Romão Batista para em seu nome declarar o motivo que aqui os reunia. Ocupada a presidência pelo reverendo Padre Cícero, fora chamado o major Pedro da Costa Nogueira, tabelião e escrivão da cidade de Milagres, que também se achava presente. Declarou o presidente que aceitando a honrosa incumbência confiada pelo seu prezado e prestigioso amigo coronel Antônio Joaquim de Santana, chefe de Missão Velha e traduzindo os sentimentos altamente patrióticos do egrégio chefe político, Excelentíssimo Senhor Doutor Antônio Pinto Nogueira Accioly, que sentia d´alma as discórdias existentes entre alguns chefes políticos desta zona, propunha que, para desaparecer por completo esta hostilidade pessoal, se estabelecesse definitivamente uma solidariedade política entre todos, a bem da organização do partido os adversários se reconciliassem, e ao mesmo tempo lavrassem todos um pacto de harmonia política. Disse mais que para que ficasse gravado este grande feito na consciência de todos e de cada um de per si, apresentava e submetia à discussão e aprovação subseqüente os seguintes artigos de fé política:
Art. 1º - Nenhum chefe político protegerá criminoso do seu município nem dará apoio nem guarida aos dos municípios vizinhos, devendo ao contrário, ajudar a captura destes, de acordo com a moral e o direito.
Art. 2º - Nenhum chefe procurará depor outro chefe, seja qual for a hipótese.
Art. 3º - Havendo em qualquer dos municípios reações, ou mesmo, tentativas contra o chefe oficialmente reconhecido com o fim de depô-lo, ou de desprestigiá-lo, nenhum dos chefes dos outros municípios intervirá nem consentirá que os seus municípios intervenham ajudando direta ou indiretamente os autores da reação.
Art. 4º - Em casos tais só poderá intervir por ordem do governo para manter o chefe e nunca para depor.
Art. 5º - Toda e qualquer contrariedade ou desinteligência entre os chefes presentes será resolvida amigavelmente por um acordo, mas nunca por um acordo de tal ordem, cujo resultado seja deposição, a perda de autoridade ou de autonomia de um deles.
Art. 6º - E nessa hipótese, quando não puderem resolver pelo fato de igualdade de votos de duas opiniões, ouvir-se-á o governo, cuja ordem e decisão será respeitada e restritamente obedecida.
Art. 7º - Cada chefe, a bem da ordem e da moral política, terminará por completo a proteção a cangaceiros, não podendo protegê-los e nem consentir que os seus munícipes, seja sob que pretexto for, os protejam dando-lhes guarida e apoio.
Art. 8º - Manterão todos os chefes políticos aqui presentes inquebrantável solidariedade não só pessoal como política, de modo que haja harmonia de vistas entre todos, sendo em qualquer emergência “um por todos e todos por um”, salvo em caso de desvio da disciplina partidária, quando algum dos chefes entenda de colocar-se contra a opinião do chefe do partido, o Excelentíssimo Doutor Antônio Pinto Nogueira Accioly: Nessa última hipótese cumpre ouvirem e cumprirem as ordens do governo e secundarem-no nos seus esforços para manter intacta a disciplina partidária.
Art. 9º - Manterão todos os chefes incondicional solidariedade com o Excelentíssimo Doutor Antônio Pinto Nogueira Accioly, nosso honrado chefe, e como políticos disciplinados obedecerão incondicionalmente suas ordens e determinações.
Submetidos a votos, foram todos os referidos artigos aprovados, propondo unanimemente todos que ficassem logo em vigor desde essa ocasião.
Depois de aprovados, o Padre Cícero levantando-se declarou que sendo de alto alcance o pacto estabelecido, propunha que fosse lavrado no Livro de Atas desta municipalidade todo o ocorrido, para por todos os chefes ser assinado, e que se extraísse uma cópia da referida ata para ser registrada nos Livros das municipalidades vizinhas, bem como para ser remetida ao doutor presidente do Estado, que deverá ficar ciente de todas as resoluções tomadas, o que foi feito por aprovação de todos e por todos assinado.
Eu, Pedro da Costa Nogueira, secretário, a escrevi.
Assinam:
Padre Cícero Romão Batista
Antônio Luís Alves Pequeno
Antônio Joaquim de Santana
Pedro Silvino de Alencar
Romão Pereira Filgueiras Sampaio
Roque Pereira de Alencar
Antônio Mendes Bezerra
Antônio Correia Lima
Raimundo Bento de Sousa Baleco
Padre Augusto Barbosa de Menezes
Cândido Ribeiro Campos
Manoel Furtado de Figueiredo
José Inácio de Sousa
João Augusto de Lima
Arnulfo Lins e Silva
José Raimundo de Macedo
José Alves Pimentel
Comentários
- “O receio era o de que a reunião acabasse em tiro. Nunca se viram – nem jamais se voltaria a ver – tantos coronéis sertanejos assim reunidos em um mesmo lugar, como naquele 4 de outubro de 1911, em Juazeiro, o dia da posse do Padre Cícero na prefeitura. Lá fora, as ruas estavam enfeitadas de bandeirinhas de papel e a banda do mestre Pelúsio de Macedo fazia a festa. No interior da casa que sediou a solenidade oficial, os dezesseis homens vestidos em roupa de domingo foram recebidos com chuvas de flores e papel picado. Mas não escondiam de ninguém, que ruminavam uma coleção de rancores mútuos. Praticamente todos os chefes políticos do Cariri – incluindo o coronel Antônio Luís – haviam acatado o chamado do sacerdote para tão insólito conclave que marcaria seu primeiro dia como prefeito. Quando Padre Cícero levantou da mesa ao final daquela histórica reunião e passou a colher a assinatura de todos, os coronéis do Cariri já tinham tomado consciência de que, diante da nova situação, precisavam eleger um chefe imediato entre eles. Esse chefe não seria, necessariamente, Accioly. Carecia ser alguém que estivesse mais perto deles e que, a despeito das diferenças e dos ódios pessoais que os separavam, fosse um homem cuja palavra seria acatada sem ressalvas. Os coronéis precisavam de um líder político no Cariri. Naquela tarde, esse líder se revelara naturalmente – e já tinha um nome. O nome dele, ninguém se atreveria a discordar, era Padre Cícero”. Assim, Lira Neto descreveu em seu livro Padre Cícero, poder, fé e guerra no sertão a reunião em que foi assinado o Pacto dos Coronéis.
- Durante muito tempo se especulou a respeito de quem concebeu a ideia da famigerada reunião. O nome do seu autor está até hoje envolto em mistério, sendo motivo de muitas especulações. O primeiro sinal dado no sentido de tentar elucidar o mistério pode ser visto num dos artigos da série “Formal desmentido” publicada por Dr. Floro Bartholomeu da Costa, no jornal Unitário, de Fortaleza, de 9 a 17 de junho de 1915, onde ele escreveu: “Determinado o dia 11 de outubro do mesmo ano de 1911 para a inauguração da vila e estando mui acirrados os ódios dos chefes do Cariri, especialmente os de Lavras, Aurora, Milagres, Missão Velha, Barbalha e Brejo dos Santos, contra os do Crato e os de Porteiras, lembrei ao Padre Cícero a necessidade de estabelecer-se a harmonia entre todos. Para isso conseguir, a todos convidamos, de acordo com o Dr. Nogueira Accioly, para no dia 4 de outubro estabelecermos um pacto de paz entre todos os chefes inimizados.”
- O escritor Otacílio Anselmo tem opinião diferente, pois na sua volumosa obra Padre Cícero, mito e realidade diz que, na reunião em que Padre Cícero foi empossado como primeiro Prefeito de Juazeiro, o juiz de Barbalha, Dr. Arnulfo Lins e Silva “aproveitou o ensejo para inspirar e, sob o patrocínio do Padre Cícero, promover um convênio entre os numerosos chefes municipais ali reunidos, no sentido de estabelecer um clima de paz e assegurar a tranquilidade das populações caririenses, até então em pânico permanente por conflitos armados resultantes de velhos ódios entre grupos e famílias irreconciliáveis, transmitidos de geração em geração e que ainda hoje subsistem.”
- Edmar Morel atribui a ideia do pacto dos coronéis ao Padre Cícero, pois em sua obra Padre Cícero, o santo do Juazeiro ele assim escreveu: “O Padre querendo firmar o seu prestígio junto à oligarquia dos Acciolys, que já governavam o Ceará há vinte anos, em dois períodos, e ao mesmo tempo pôr em prova se ainda seria hostilizado pelos políticos, seus vizinhos, como no caso das minas do Coxá, levanta a ideia da realização de um convênio, no Juazeiro, com a participação de todos os senhores feudais, senhores de cangaceiros e senhores de eleitores”. O autor conclui tachando o pacto como “uma página da história do banditismo no Nordeste, um pacto de honra assinado pelos maiores e mais respeitáveis coronéis que infelicitaram os sertões do Brasil, atirando homens contra homens e transmitindo o ódio e a sede de vingança de geração em geração. Uma página celebérrima do cangaceirismo no Brasil”.
- Nesta mesma linha segue Amália Xavier de Oliveira, quando em seu livro O Padre Cícero que eu conheci, afirmou: “Foi o Padre Cícero quem programou, para o dia de sua posse, uma reunião com os chefes políticos da região a fim de assinarem um pacto de amizade e apoio mútuo tendo como um dos objetivos evitar movimentos que perturbassem a ordem na região caririense, procurando resolver as questões que surgissem, sem contendas prejudiciais, ao desenvolvimento das comunas”. E concluiu Amália Xavier de Oliveira: “Para fazer apresentação dos artigos o coronel Santana passou a Presidência (da reunião) ao Rev. Pe. Cícero, que explicou, aos presentes, a razão por que se fazia, naquele momento, um pacto de amizade e auxílio mútuo, com aquele programa de orientação”.
Esta passagem, inclusive, está registrada na ata do pacto transcrita no início deste capítulo. Assim, temos três autores da ideia do Pacto: Dr. Floro, o juiz Dr. Arnulfo e o Padre Cícero. E a dúvida persiste com respeito à autoria.
- Em seu livro Império do bacamarte o escritor Joaryvar Macedo tenta minimizar a questão da autoria da ideia do Pacto salientando que: “Seja quem for o autor do Pacto, é lícito admitir, ou mesmo acreditar nas suas retas intenções. Não parece justo considerá-lo uma farsa em sua gênese, como querem alguns. O acordo, na sua realidade, transformou-se numa pantomima, porque inexeqüível, pelo menos em parte dos seus artigos. Homens, na sua maioria despóticos, vezeiros em dominar pelo poder do bacamarte, achavam-se absolutamente despreparados para assumir compromissos de tal ordem. De outro ângulo, deixar de proteger facínoras e cangaceiros equivaleria a decretar a extinção do coronelismo. Um dos seus mais fortes esteios era precisamente o banditismo”.
- Diz ainda Joaryvar: “O texto da ata da singular Assembleia dos coronéis sul-cearenses, na qual se firmou o curioso pacto, reflete a posição proeminente do Padre Cícero na contextura coronelítica regional. Manifesta ademais, que, naquela conjuntura, a jeito trabalhada e preparada, o levita, além de assumir a chefia local, investia-se, concomitantemente, no comando político da região”.
- Assim como Joaryvar Macedo, Otacílio Anselmo também acha que “apesar da boa intenção do seu idealizador, o pacto seria inexeqüível num meio em que a lei vigente era a do mais forte e onde as questões, mesmo as mais simples, resolviam-se ao sabor da vontade soberana de velhos sobas apegados a seus interesses econômicos e as suas ambições políticas”.
- Para o escritor Rui Facó, na sua famosa obra Cangaceiros e fanáticos, “o pacto era na verdade um sinal de debilidade, um prenúncio de decadência do coronel tradicional, do potentado do interior, outrora senhor absoluto de seu feudo e em disputa constante com os feudos vizinhos. Sua maneira de pensar fora sempre esta: todos lhe deviam render vassalagem!”.
- Para Irineu Pinheiro, autor de Efemérides do Cariri, os coronéis presentes à reunião em Juazeiro assinaram de comum acordo “um pacto de amizade e apoio mútuo com o fim de extinguir a proteção aos criminosos, evitar movimentos que perturbassem a vida das comunas caririenses, buscando resolver as questões que surgissem entre chefes vizinhos!”.
- A imprensa cearense deu vasta cobertura à reunião que culminou com a assinatura do pacto. Nada, contudo, se compara ao que estampou o jornal O Correio do Cariri, da cidade do Crato que após extensa matéria concluiu assim: “Podem os nossos leitores avaliar das boas intenções daqueles que, esquecendo antigos ressentimentos, se congraçaram, para, cumprindo santos deveres sociais, rasgarem um novo horizonte mais amplo e mais claro, aos públicos negócios desta opulenta e próspera parte de nosso Estado”.
- Mas para o historiador americano Ralph Della Cava, autor de Milagre em Joaseiro, os coronéis do Cariri “contentes com a vitória obtida sobre Antônio Luís e desejosos de impedir que o Juazeiro viesse a dominar a região lançaram na famosa reunião a proclamação do hoje famoso Pacto dos Coronéis”. E conclui della Cava: “Finalmente, com o objetivo de fazer vigorar o pacto e garantir a participação da região na divisão do espólio político do poder estadual, comprometiam-se todos os delegados (presentes à reunião), a manter “incondicional” solidariedade com o excelentíssimo doutor Antônio Pinto Nogueira Accioly, seu honrado chefe, e como políticos disciplinados obedecer incondicionalmente suas ordens e determinações”.
- No final das contas, o certo mesmo é que o pacto falhou fragorosamente no conteúdo dos seus dois últimos artigos, pois cerca de pouco mais de três meses após a sua assinatura o presidente Accioly é apeado do poder, constituindo-se no mais duro golpe para os chefes políticos Acciolynos do Ceará.
- A queda do velho cacique da política cearense trouxe de roldão também o baque de muitos coronéis do Cariri, seus correligionários, mas, consoante acentua Joaryvar Macedo “a partir daí, começariam os caciques sul-cearenses, com desmedido empenho, a preparar uma sublevação, no sentido de retornarem ao poder supremo dos seus redutos eleitorais. E voltaram todos, com a vitória da rebelião de Juazeiro, de 1913 para 1914, - uma sedição dos coronéis”.
- À reunião para assinatura do Pacto duas importantes forças políticas do Cariri não marcaram presença nem mandaram representantes: coronel Basílio Gomes da Silva, de Brejo Santo, e coronel Napoleão Franco da Cruz Neves, de Jardim, pois ambos já haviam rompido com Accioly. Contudo, outros chefes políticos destes municípios estavam presentes.
Conclusão
Diante do exposto, fica evidente que paira dúvida sobre quem é o autor da ideia de realização da reunião que resultou na assinatura do Pacto dos coronéis. Mas todos concordam num ponto: a aposição da assinatura do Padre Cícero no referido documento oficializou sua liderança como chefe político da Cariri, mas também o transformou num coronel de batina conforme lhe atribuem muitos dos seus biógrafos.
Também fica evidente que mesmo o Pacto não tendo conseguido o êxito esperado, isso não diminuiu em nada o prestígio político do Padre Cícero que mais tarde o confirmou quando liderou juntamente com o deputado Floro Bartholomeu da Costa, em 1914, o movimento sedicioso que culminou com a deposição do Presidente do Ceará, Franco Rabelo.
Também é possível concluir que depois do Pacto dos Coronéis a história do Padre Cícero toma outro rumo, agora de natureza política, mas que andou ao lado da sua já consolidada áurea de líder religioso de uma grande massa de sertanejos, sob o olhar de repúdio da Igreja Católica Apostólica Romana, que tirou suas ordens em 1894 e em 2015 promoveu sua reconciliação.
Não obstante as críticas ostensivas dirigidas a assembleia política que culminou com a assinatura do Pacto dos Coronéis, não há como anular o fato de este evento figurar como um dos mais importantes acontecimentos políticos da história do Cariri e do Ceará, pois nunca se viu tantos caciques da política cearense juntos numa vila recém-criada. E mais: somente o Padre Cícero teria força e prestígio suficientes para convocar os participantes da reunião.
Por tudo isso, o Pacto dos Coronéis é tema recorrente na vasta bibliografia de Padre Cícero e jamais deixará de ser um assunto polêmico.
GALERIA DOS PERSONAGENS DO PACTO DOS CORONEIS
Padre Cícero Dr. Floro
Cel. Accioly Cel. Antônio Luís
Cel. Antônio Correia Lima e Pe. Augusto Barbosa
Cel. Gustavo Augusto e Cel. João Augusto
Cel. José Alves Pimentel e Cel. Pedro Silvino
Cel. Cândido Ribeiro Campos e Cel. Antônio Joaquim de Santana
Cel. Romão Pereira Filgueiras Sampaio
O Pacto dos Coronéis na concepção da artista plástica juazeirense Assunção Gonçalves. Esta tela encontra-se exposta na Câmara Municipal de Juazeiro do Norte.
Casa de dona Rosinha Esmeraldo (em sua arquitetura original) onde Padre Cícero foi empossado no cargo de intendente de Juazeiro e também local da realização da assembleia política que lavrou o Pacto dos Coronéis.
Prédio onde foi assinado o Pacto dos coronéis atualmente
BIBLIOGRAFIA
ANSELMO, Otacílio. Padre Cícero: mito e realidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
BARBOSA DA SILVA, José Fábio. Organização Social de Juazeiro e Tensões entre Litoral e Interior, in Sociologia, vol. XXIV, n° 3, setembro de 1962. São Paulo,, Fundação Escola de Sociologia Política de São Paulo.
CAMURÇA, Marcelo. Marretas, molambudos e rabelistas: a revolta de 1914 no Juazeiro. São Paulo: Maltese, 1994.
DELA CAVA, Ralph. Milagre em Joaseiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.
FACÓ, Rui. Cangaceiros e fanáticos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976.
JANOTTI, Maria de Lourdes M. O Coronelismo, uma Política de Compromissos. São Paulo, Editora Brasiliense S.A., 1981, p. 73.
LIRA NETO. Padre Cícero: poder, fé e guerra no sertão. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
LOPES, Regis. Caldeirão. Fortaleza: Eduece, 1991.
MACEDO, Joaryvar. Império do bacamarte: uma abordagem sobre o coronelismo no Cariri. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, 1990.
MOREL, Edmar. Padre Cícero: o santo de Juazeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966.
PINHEIRO, Irineu. Efemérides do Cariri. Fortaleza: Imprensa Universitária do Ceará, 1963.
XAVIER DE OLIVEIRA, Amália. O Padre Cícero que eu conheci. Rio de Janeiro: Gráfica Olímpica Editora Ltda., 1969.
O AUTOR
Daniel Walker é natural da cidade de Juazeiro do Norte, Ceará, onde nasceu em 6 de setembro de 1947. É formado em História Natural pela Faculdade de Filosofia do Crato, com Curso de Especialização em História do Brasil pela Universidade Cândido Mendes, do Rio de Janeiro. Professor Adjunto aposentado da Universidade Regional do Cariri-URCA. Desenvolve também atividade como jornalista com trabalhos publicados pela imprensa juazeirense e de Fortaleza. Em 1995 fundou o jornal eletrônico Juaonline, a vitrine da história de Juazeiro do Norte, rebatizado em 2008 com o nome de www.portaldejuazeiro.com É pesquisador da vida do Padre Cícero e de Juazeiro do Norte sobre quem já publicou os seguintes livros:
e-mail: danielwalker47@gmail.com