quinta-feira, 21 de julho de 2016

Padre Cícero e o Pacto dos Coronéis - Daniel Walker

Introdução
No dia 4 de outubro de 1911,  o recém-criado município de Juazeiro, Ceará,  foi sede de dois grandes eventos políticos: a posse de Padre Cícero Romão Baptista no cargo de intendente (atualmente se diz prefeito) e a realização de uma assembleia ou sessão política para assinatura de um controvertido documento que passou à história com o nome de Pacto dos Coronéis. O referido documento também foi chamado de Pacto de paz, Pacto de harmonia política, Aliança política, Conferência política, Pacto de Haya-mirim e ainda Artigos de fé política.

Quando se fala no nome do Padre Cícero, a figura que realça em primeiro lugar é a de santo dos nordestinos, pois é como tal que ele é mais conhecido. Entretanto, existe em sua biografia um forte peso como figura política, embora isto seja mais conhecido e estudado apenas pelos seus pesquisadores. Aqueles que se consideram seus devotos, pouca ou nenhuma importância dão ao fato, porquanto para eles o que importa mesmo é o homem santo capaz de fazer milagres, o protetor nas horas das aflições. E foi assim que ele conseguiu uma grande legião de devotos. Como político fez muitos desafetos.

Mas de uns tempos para cá, sua vida política começou a ser dissecada pelos cientistas sociais e a partir da publicação dos primeiros textos, uma nova legião de admiradores surgiu. 

Assim, a dicotomia envolvendo o santo e o político passou a ter terreno próprio e essas duas vertentes, indissolúveis e complementares, coexistem a despeito dos pareceres positivos de uns e negativos de outros.

Como signatário do Pacto dos Coronéis, Padre Cícero consolidou sua vida política, transformando-se na maior liderança do interior cearense. Porém, se por um lado isto lhe deu uma indiscutível força de mando, por outro lado arranhou profundamente sua  biografia perante a sua igreja, que já o tinha na conta de embusteiro e doravante passou a tê-lo também como um coronel, certamente uma nódoa na sua apregoada santidade. 

Por isso, é muito importante estudar essa particularidade da sua vida a qual já rendeu farta bibliografia e não para de crescer. Neste contexto, o objetivo principal deste trabalho é fazer uma análise das implicações decorrentes da assinatura do Padre Cícero no Pacto dos Coronéis, conforme as opiniões emitidas por escritores que estudaram o assunto em seus mais variados aspectos. 

Para melhor compreensão do tema é feita inicialmente a transcrição da ata do histórico evento e a partir daí tem início a análise que define a importância do Pacto dos Coronéis na história política do Padre Cícero. No final é apresentada uma galeria com fotos de alguns dos coronéis que tiveram ligação com o famigerado evento. 
                                                                                                                          
O que é coronelismo
Até o final do século XIX, esteve em vigor no Brasil,  um sistema conhecido popularmente por coronelismo, cuja política era controlada e liderada pelos ricos fazendeiros então denominados de coronéis.  

No interior cearense, mais particularmente no Cariri, o coronelismo se caracterizava pela prática abusiva de duas irregularidades: o voto de cabresto e a fraude eleitoral. 

Na Velha República, o sistema eleitoral vigente era bastante vulnerável à manipulação. Por isso, os coronéis poderosos compravam votos para seus candidatos ou então os permutavam por bens materiais. Como o voto era aberto (não havia ainda o sistema de urnas), os eleitores se sentiam coagidos e para evitar represálias não havia outro jeito senão votar no candidato indicado pelos coronéis. As regiões sobre as quais os coronéis exerciam poder de mando político ficaram conhecidas como “currais eleitorais”. 

Entre as fraudes eleitorais praticadas pelos coronéis caririenses estavam o costume de alterar votos, sumir com urnas e o uso abusivo do chamado voto fantasma, o qual consistia em falsificar documentos para que eleitores pudessem votar várias vezes em prol de determinado candidato. Era comum inclusive o voto de pessoas mortas. 
Fim do coronelismo
O coronelismo em seu formato original começou a ser extinto com a chegada de Getúlio Vargas ao poder, como resultado da Revolução de 1930. Em algumas regiões do Brasil desapareceu completamente, mas em outras  o coronelismo  continuou mais algum tempo, embora com menos intensidade e adaptado a uma nova realidade. A compra de votos continua até hoje. Mas os atuais chefes políticos, mesmo sendo grandes latifundiários, não são mais chamados de coronéis.

Padre Cícero pode ser chamado de coronel?
Por ser dono de várias propriedades rurais (embora tenha deixado tudo para a Igreja) e poder para decidir uma eleição, Padre Cícero é considerado por muitos escritores como tendo sido um coronel. Mas a pecha de coronel, no sentido como o termo é usado e entendido no Nordeste, não se coaduna com o comportamento e a personalidade do Padre Cícero. Ninguém conhece registro da existência de armas em sua residência ou de capangas a sua disposição, coisas muito comuns aos coronéis de que fala a literatura.

Entretanto, até hoje, não existe consenso com respeito a Padre Cícero ser ou não considerado como um coronel. As opiniões emitidas pelos estudiosos são muito variadas e dicotômicas. 

Vejamos algumas:
Maria de Lourdes M. Janotti, escritora: "Padre Cícero foi o mais célebre de todos os coronéis". 

José Fábio Barbosa da Silva, professor e escritor: "Padre Cícero também era o coronel dono de imensa força política que passou a representar os romeiros, quando Juazeiro se tornou independente. O Padre Cícero também possuía o status mais elevado, mais alto que o dos coronéis tradicionais". 
Moisés Duarte, evangélico:  “Padre Cícero era amigo do peito de vários latifundiários da região, conhecidos como "os coronéis". Esses senhores ilustres eram opressores dos pobres, marginalizavam os sertanejos, excluindo-os do direito à saúde, aos alimentos e até à vida. Pasme, o Padim Ciço pertencia a essa espécie de liga de coronéis do Ceará e a defendia”.

Rui Facó, jornalista: "Por que o Padre Cícero desfrutando de enorme popularidade, dispondo de tudo quanto fazia de alguém um coronel, por que não seria ele um coronel? Apenas porque vestia batina, ordenara-se padre, fazia milagres? Na verdade, nada diferenciava o Padre Cícero Romão Batista de qualquer dos latifundiários da zona. Utilizou, e em grande escala, os mesmos métodos familiares àqueles, como dar abrigo a capangas e cangaceiros e aproveitá-los ou permitir que outrem os aproveitassem para a consecução de objetivos políticos que também eram os seus". 

José Boaventura de Sousa, historiador e professor: "Padre Cícero foi um coronel, mas um coronel diferente da conotação que a sociologia aponta. Não foi um coronel explorador, foi um coronel porque todos o procuravam como um líder". 

Francisco Régis Lopes Ramos, historiador e escritor: "Padre Cícero alia-se aos coronéis, mas não se torna um deles. Suas atitudes são de apadrinhamento, de um protetor dos desclassificados, de um conselheiro e não de um político ou coronel". 

Neri Feitosa, sacerdote e escritor: "Ele não tinha patente militar nem da Guarda Nacional. Ninguém o chamou oralmente de coronel. Por escrito, deram-lhe este epíteto por hipérbole e por analogia". 

Marcelo Camurça, historiador:  “No meu modo de ver o Padre Cícero se relacionou com as oligarquias, transitou na sociedade política, se compôs com os setores dominantes, tanto pela sua condição de sacerdote letrado, um intelectual tradicional, e esta condição o estimulava qual outros padres no Império e na República a ter uma projeção social, quanto pela vontade de ajudar o seu povo, de levar adiante o seu projeto de manter de pé a comunidade do Juazeiro, pela via da conciliação tão marcante na sua visão de mundo. Porém, o Padre Cícero nunca abriu mão de sua identidade sacra, do seu papel de guia religioso, de líder espiritual, para se tornar um político profissional, tampouco abriu mão da mística do "milagre" e de sua visão messiânica, simbólica do catolicismo popular, daquele primeiro sonho que teve quando Cristo encarregou-o de cuidar do Juazeiro e de seu povo. Este sem dúvida não é o perfil de um "Coronel" latifundiário ou de um político das classes dominantes”. 

Ata do Pacto dos Coronéis
“Aos quatro dias do mês de outubro do ano de mil novecentos e onze, nesta vila de Juazeiro do Padre Cícero, município do mesmo nome, Estado do Ceará, no paço da Câmara Municipal, compareceram à uma hora da tarde os seguintes chefes políticos: coronel Antônio Joaquim de Santana, chefe do município de Missão Velha; coronel Antônio Luís Alves Pequeno, chefe do município do Crato; reverendo Padre Cícero Romão Batista, chefe do município do Juazeiro; coronel Pedro Silvino de Alencar, chefe do município de Araripe; coronel Romão Pereira Filgueiras Sampaio, chefe do município de Jardim; coronel Roque Pereira de Alencar, chefe do município de Santana do Cariri; coronel Antônio Mendes Bezerra, chefe do município de Assaré; coronel Antônio Correia Lima, chefe do município de Várzea Alegre; coronel Raimundo Bento de Sousa Baleco, chefe do município de Campos Sales; reverendo padre Augusto Barbosa de Menezes, chefe do município de S. Pedro do Cariri; coronel Cândido Ribeiro Campos, chefe do município de Aurora; coronel Domingos Leite Furtado, chefe do município de Milagres, representado pelos ilustres cidadãos, coronel Manuel Furtado de Figueiredo e major José Inácio de Sousa; coronel Raimundo Cardoso dos Santos, chefe do município de Porteiras, representado pelo reverendo Padre Cícero Romão Batista; coronel Gustavo Augusto de Lima, chefe do município de Lavras da Mangabeira, representado por seu filho João Augusto de Lima; coronel João Raimundo de Macedo, chefe do município de Barbalha, representado por seu filho major José Raimundo de Macedo e pelo juiz de direito daquela comarca, doutor Arnulfo Lins e Silva; coronel Joaquim Fernandes de Oliveira, chefe do município de Quixará, representado pelo ilustre cidadão major José Alves Pimentel; e o coronel  Inácio de Lucena, chefe do município de Brejo Santo, representado pelo coronel Antônio Joaquim de Santana. A convite deste que, assumindo a presidência da magna sessão, logo deixou, ocupando-a o reverendo Padre Cícero Romão Batista para em seu nome declarar o motivo que aqui os reunia. Ocupada a presidência pelo reverendo Padre Cícero, fora chamado o major Pedro da Costa Nogueira, tabelião e escrivão da cidade de Milagres, que também se achava presente. Declarou o presidente que aceitando a honrosa incumbência confiada pelo seu prezado e prestigioso amigo coronel Antônio Joaquim de Santana, chefe de Missão Velha e traduzindo os sentimentos altamente patrióticos do egrégio chefe político, Excelentíssimo Senhor Doutor Antônio Pinto Nogueira Accioly, que sentia d´alma as discórdias existentes entre alguns chefes políticos desta zona, propunha que, para desaparecer por completo esta hostilidade pessoal, se estabelecesse definitivamente uma solidariedade política entre todos, a bem da organização do partido os adversários se reconciliassem, e ao mesmo tempo lavrassem todos um pacto de harmonia política. Disse mais que para que ficasse gravado este grande feito na consciência de todos e de cada um de per si, apresentava e submetia à discussão e aprovação subseqüente os seguintes artigos de fé política:
Art. 1º - Nenhum chefe político protegerá criminoso do seu município nem dará apoio nem guarida aos dos municípios vizinhos, devendo ao contrário, ajudar a captura destes, de acordo com a moral e o direito.
Art. 2º - Nenhum chefe procurará depor outro chefe, seja qual for a hipótese.
Art. 3º - Havendo em qualquer dos municípios reações, ou mesmo, tentativas contra o chefe oficialmente reconhecido com o fim de depô-lo, ou de desprestigiá-lo, nenhum dos chefes dos outros municípios intervirá nem consentirá que os seus municípios intervenham ajudando direta ou indiretamente os autores da reação.
Art. 4º - Em casos tais só poderá intervir por ordem do governo para manter o chefe e nunca para depor.
Art. 5º - Toda e qualquer contrariedade ou desinteligência entre os chefes presentes será resolvida amigavelmente por um acordo, mas nunca por um acordo de tal ordem, cujo resultado seja deposição, a perda de autoridade ou de autonomia de um deles.
Art. 6º - E nessa hipótese, quando não puderem resolver pelo fato de igualdade de votos de duas opiniões, ouvir-se-á o governo, cuja ordem e decisão será respeitada e restritamente obedecida.
Art. 7º - Cada chefe, a bem da ordem e da moral política, terminará por completo a proteção a cangaceiros, não podendo protegê-los e nem consentir que os seus munícipes, seja sob que pretexto for, os protejam dando-lhes guarida e apoio.
Art. 8º - Manterão todos os chefes políticos aqui presentes inquebrantável solidariedade não só pessoal  como política, de modo que haja harmonia de vistas entre todos, sendo em qualquer emergência “um por todos e todos por um”, salvo em caso de desvio da disciplina partidária, quando algum dos chefes entenda de colocar-se contra a opinião do chefe do partido, o Excelentíssimo Doutor Antônio Pinto Nogueira Accioly: Nessa última hipótese cumpre ouvirem e cumprirem as ordens do governo e secundarem-no nos seus esforços para manter intacta a disciplina partidária.
Art. 9º - Manterão todos os chefes incondicional solidariedade com o Excelentíssimo Doutor Antônio Pinto Nogueira Accioly, nosso honrado chefe, e como políticos disciplinados obedecerão incondicionalmente suas ordens e determinações.
Submetidos a votos, foram todos os referidos artigos aprovados, propondo unanimemente todos que ficassem logo em vigor desde essa ocasião.
Depois de aprovados, o Padre Cícero levantando-se declarou que sendo de alto alcance o pacto estabelecido, propunha que fosse lavrado no Livro de Atas desta municipalidade todo o ocorrido, para por todos os chefes ser assinado, e que se extraísse uma cópia da referida ata para ser registrada nos Livros das municipalidades vizinhas, bem como para ser remetida ao doutor presidente do Estado, que deverá ficar ciente de todas as resoluções tomadas, o que foi feito por aprovação de todos e por todos assinado.
Eu, Pedro da Costa Nogueira, secretário, a escrevi.
Assinam: 
Padre Cícero Romão Batista
Antônio Luís Alves Pequeno
Antônio Joaquim de Santana
Pedro Silvino de Alencar
Romão Pereira Filgueiras Sampaio
Roque Pereira de Alencar
Antônio Mendes Bezerra
Antônio Correia Lima
Raimundo Bento de Sousa Baleco
Padre Augusto Barbosa de Menezes
Cândido Ribeiro Campos
Manoel Furtado de Figueiredo
José Inácio de Sousa
João Augusto de Lima
Arnulfo Lins e Silva
José Raimundo de Macedo
José Alves Pimentel

Comentários
- “O receio era o de que a reunião acabasse em tiro. Nunca se viram – nem jamais se voltaria a ver – tantos coronéis sertanejos assim reunidos em um mesmo lugar, como naquele 4 de outubro de 1911, em Juazeiro, o dia da posse do Padre Cícero na prefeitura. Lá fora, as ruas estavam enfeitadas de bandeirinhas de papel e a banda do mestre Pelúsio de Macedo fazia a festa. No interior da casa que sediou a solenidade oficial, os dezesseis homens vestidos em roupa de domingo foram recebidos com chuvas de flores e papel picado. Mas não escondiam de ninguém, que ruminavam uma coleção de rancores mútuos. Praticamente todos os chefes políticos do Cariri – incluindo o coronel Antônio Luís – haviam acatado o chamado do sacerdote para tão insólito conclave que marcaria seu primeiro dia como prefeito. Quando Padre Cícero levantou da mesa ao final daquela histórica reunião e passou a colher a assinatura de todos, os coronéis do Cariri já  tinham tomado consciência de que, diante da nova situação, precisavam eleger um chefe imediato entre eles. Esse chefe não seria, necessariamente, Accioly. Carecia ser alguém que estivesse mais perto deles e que, a despeito das diferenças e dos ódios pessoais que os separavam, fosse um homem cuja palavra seria acatada sem ressalvas. Os coronéis precisavam de um líder político no Cariri. Naquela tarde, esse líder se revelara naturalmente – e já tinha um nome. O nome dele, ninguém se atreveria a discordar, era Padre Cícero”. Assim, Lira Neto descreveu em seu livro Padre Cícero, poder, fé e guerra no sertão a reunião em que foi assinado o Pacto dos Coronéis.

- Durante muito tempo se especulou a respeito de quem concebeu a ideia da famigerada reunião. O nome do seu autor está até hoje envolto em mistério, sendo motivo de muitas especulações. O primeiro sinal dado no sentido de tentar elucidar o mistério pode ser visto num dos artigos da série “Formal desmentido” publicada por Dr. Floro Bartholomeu da Costa, no jornal Unitário, de Fortaleza, de 9 a 17 de junho de 1915,  onde ele escreveu: “Determinado o dia 11 de outubro do mesmo ano de 1911 para a inauguração da vila e estando mui acirrados os ódios dos chefes do Cariri, especialmente os de Lavras, Aurora, Milagres, Missão Velha, Barbalha e Brejo dos Santos, contra os do Crato e os de Porteiras, lembrei ao Padre Cícero a necessidade de estabelecer-se a harmonia entre todos.  Para isso conseguir, a todos convidamos, de acordo com o Dr. Nogueira Accioly, para no dia 4 de outubro estabelecermos um pacto de paz entre todos os chefes inimizados.”  

- O escritor Otacílio Anselmo tem opinião diferente, pois na sua volumosa obra Padre Cícero, mito e realidade diz que, na reunião em que Padre Cícero foi empossado como primeiro Prefeito de Juazeiro, o juiz de Barbalha, Dr. Arnulfo Lins e Silva “aproveitou o ensejo para inspirar e, sob o patrocínio do Padre Cícero, promover um convênio entre os numerosos chefes municipais ali reunidos, no sentido de estabelecer um clima de paz e assegurar a tranquilidade das populações caririenses, até então em pânico permanente por conflitos armados resultantes de velhos ódios entre grupos e famílias irreconciliáveis, transmitidos de geração em geração e que ainda hoje subsistem.”

- Edmar Morel  atribui a ideia do pacto dos coronéis ao Padre Cícero, pois em sua obra Padre Cícero, o santo do Juazeiro ele assim escreveu: “O Padre querendo firmar o seu prestígio junto à oligarquia dos Acciolys, que já governavam o Ceará há vinte anos, em dois períodos, e ao mesmo tempo pôr em prova se ainda seria hostilizado pelos políticos, seus vizinhos, como no caso das minas do Coxá, levanta a ideia da realização de um convênio, no Juazeiro, com a participação de todos os senhores feudais, senhores de cangaceiros e senhores de eleitores”. O autor conclui tachando o pacto como “uma página da história do banditismo no Nordeste, um pacto de honra assinado pelos maiores e mais respeitáveis coronéis que infelicitaram os sertões do Brasil, atirando homens contra homens e transmitindo o ódio e a sede de vingança de geração em geração. Uma página celebérrima do cangaceirismo no Brasil”.

- Nesta mesma linha segue Amália Xavier de Oliveira, quando em seu livro O Padre Cícero que eu conheci, afirmou: “Foi o Padre Cícero quem programou, para o dia de sua posse, uma reunião com os chefes políticos da região a fim de assinarem um pacto de amizade e apoio mútuo tendo como um dos objetivos evitar movimentos que perturbassem a ordem na região caririense, procurando resolver as questões que surgissem, sem contendas prejudiciais, ao desenvolvimento das comunas”. E concluiu Amália Xavier de Oliveira: “Para fazer apresentação dos artigos o coronel Santana passou a Presidência (da reunião) ao Rev. Pe. Cícero, que explicou, aos presentes, a razão por que se fazia, naquele momento, um pacto de amizade e auxílio mútuo, com aquele programa de orientação”. 
Esta passagem, inclusive, está registrada na ata do pacto transcrita no início deste capítulo. Assim, temos três autores da ideia do Pacto: Dr. Floro, o juiz Dr. Arnulfo e o Padre Cícero. E a dúvida persiste com respeito à autoria. 

- Em seu livro Império do bacamarte o escritor Joaryvar Macedo tenta minimizar a questão da autoria da ideia do Pacto salientando que: “Seja quem for o autor do Pacto, é lícito admitir, ou mesmo acreditar nas suas retas intenções. Não parece justo considerá-lo uma farsa em sua gênese, como querem alguns. O acordo, na sua realidade, transformou-se numa pantomima, porque inexeqüível, pelo menos em parte dos seus artigos. Homens, na sua maioria despóticos, vezeiros em dominar pelo poder do bacamarte, achavam-se absolutamente despreparados para assumir compromissos de tal ordem. De outro ângulo, deixar de proteger facínoras e cangaceiros equivaleria a decretar a extinção do coronelismo. Um dos seus mais fortes esteios era precisamente o banditismo”.

- Diz ainda Joaryvar: “O texto da ata da singular Assembleia dos coronéis sul-cearenses, na qual se firmou o curioso pacto, reflete a posição proeminente do Padre Cícero na contextura coronelítica regional. Manifesta ademais, que, naquela conjuntura, a jeito trabalhada e preparada, o levita, além de assumir a chefia local, investia-se, concomitantemente, no comando político da região”.

- Assim como Joaryvar Macedo, Otacílio Anselmo também acha que “apesar da boa intenção do seu idealizador, o pacto seria inexeqüível num meio em que a lei vigente era a do mais forte e onde as questões, mesmo as mais simples, resolviam-se ao sabor da vontade soberana de velhos sobas apegados a seus interesses econômicos e as suas ambições políticas”.

- Para o escritor Rui Facó, na sua famosa obra Cangaceiros e fanáticos, “o pacto era na verdade um sinal de debilidade, um prenúncio de decadência do coronel tradicional, do potentado do interior, outrora senhor absoluto de seu feudo e em disputa constante com os feudos vizinhos. Sua maneira de pensar fora sempre esta: todos lhe deviam render vassalagem!”.
- Para  Irineu Pinheiro, autor de Efemérides do Cariri, os coronéis presentes à reunião em Juazeiro assinaram de comum acordo “um pacto de amizade e apoio mútuo com o fim de extinguir a proteção aos criminosos, evitar movimentos que perturbassem a vida das comunas caririenses, buscando resolver as questões que surgissem entre chefes vizinhos!”.

- A imprensa cearense deu vasta cobertura à reunião que culminou com a assinatura do pacto. Nada, contudo, se compara ao que estampou o jornal O Correio do Cariri, da cidade do Crato que após extensa matéria concluiu assim: “Podem os nossos leitores avaliar das boas intenções daqueles que, esquecendo antigos ressentimentos, se congraçaram, para, cumprindo santos deveres sociais, rasgarem um novo horizonte mais amplo e mais claro, aos públicos negócios desta opulenta e próspera parte de nosso Estado”. 

- Mas para o historiador americano Ralph Della Cava, autor de Milagre em Joaseiro, os coronéis do Cariri “contentes com a vitória obtida sobre Antônio Luís e desejosos de impedir que o Juazeiro viesse a dominar a região lançaram na famosa reunião a proclamação do hoje famoso Pacto dos Coronéis”. E conclui della Cava: “Finalmente, com o objetivo de fazer vigorar o pacto e garantir a participação da região na divisão do espólio político do poder estadual, comprometiam-se todos os delegados (presentes à reunião), a manter “incondicional” solidariedade com o excelentíssimo doutor Antônio Pinto  Nogueira Accioly, seu honrado chefe, e como políticos disciplinados obedecer incondicionalmente suas ordens e  determinações”.

- No final das contas, o certo mesmo é que o pacto falhou fragorosamente no conteúdo dos seus dois últimos artigos, pois cerca de pouco mais de três meses após a sua assinatura o presidente Accioly é apeado do poder, constituindo-se no mais duro golpe para os chefes políticos Acciolynos do Ceará.

- A queda do velho cacique da política cearense trouxe de roldão também o baque de muitos coronéis do Cariri, seus correligionários, mas, consoante acentua Joaryvar Macedo “a partir daí, começariam os caciques sul-cearenses, com desmedido empenho, a preparar uma sublevação, no sentido de retornarem ao poder supremo dos seus redutos eleitorais. E voltaram todos, com a vitória da rebelião de Juazeiro, de 1913 para 1914, - uma sedição dos coronéis”. 

- À reunião para assinatura do Pacto duas importantes forças políticas do Cariri não marcaram presença nem mandaram representantes: coronel Basílio Gomes da Silva, de Brejo Santo, e coronel Napoleão Franco da Cruz Neves, de Jardim, pois ambos já haviam rompido com Accioly. Contudo, outros chefes políticos destes municípios estavam presentes.

Conclusão
Diante do exposto, fica evidente que paira dúvida sobre quem é o autor da ideia de realização da reunião que resultou na assinatura do Pacto dos coronéis. Mas todos concordam num ponto:  a aposição da assinatura do Padre Cícero no referido documento oficializou sua liderança como chefe político da Cariri, mas também o transformou num coronel de batina conforme lhe atribuem muitos dos seus biógrafos.  
Também  fica evidente que mesmo o Pacto não tendo conseguido o êxito esperado, isso não diminuiu em nada o prestígio político do Padre Cícero que mais tarde o confirmou quando liderou juntamente com o deputado Floro Bartholomeu da Costa, em 1914,  o movimento sedicioso que culminou com a deposição do Presidente do Ceará, Franco Rabelo.
Também é possível concluir que depois do Pacto dos Coronéis a história do Padre Cícero toma outro rumo, agora de natureza política, mas que andou ao lado da sua já consolidada áurea de líder religioso de uma grande massa de sertanejos, sob o olhar de repúdio da Igreja Católica Apostólica Romana, que tirou suas ordens em 1894 e em 2015 promoveu sua reconciliação.  
Não obstante as críticas ostensivas dirigidas  a assembleia política que culminou com a assinatura do Pacto dos Coronéis, não há como anular o fato de este evento figurar como um dos mais importantes acontecimentos políticos da história do Cariri e do Ceará, pois nunca se viu tantos caciques da política cearense juntos numa vila recém-criada. E mais: somente o Padre Cícero teria força e prestígio suficientes para convocar os participantes da reunião. 
Por tudo isso, o Pacto dos Coronéis é tema recorrente na vasta bibliografia de Padre Cícero e jamais deixará de ser um assunto polêmico.  

GALERIA DOS PERSONAGENS DO PACTO DOS CORONEIS
    Padre Cícero                           Dr. Floro
                                                 
    Cel. Accioly             Cel. Antônio Luís
                                                           
    Cel. Antônio Correia Lima e Pe. Augusto Barbosa
 
     Cel. Gustavo Augusto e Cel. João Augusto
    Cel. José Alves Pimentel e Cel. Pedro Silvino
     Cel. Cândido Ribeiro Campos    e  Cel. Antônio Joaquim de Santana
     Cel. Romão Pereira Filgueiras Sampaio

O Pacto dos Coronéis na concepção da artista plástica juazeirense Assunção Gonçalves. Esta tela encontra-se exposta na Câmara Municipal de Juazeiro do Norte.  

Casa de dona Rosinha Esmeraldo (em sua arquitetura original) onde Padre Cícero foi empossado no cargo de intendente de Juazeiro e também local da realização da assembleia política que lavrou o Pacto dos Coronéis. 
    

Prédio onde foi assinado o Pacto dos coronéis atualmente


BIBLIOGRAFIA
     
ANSELMO, Otacílio. Padre Cícero: mito e realidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
BARBOSA DA SILVA, José Fábio. Organização Social de Juazeiro e Tensões entre Litoral e Interior, in Sociologia, vol. XXIV, n° 3, setembro de 1962. São Paulo,, Fundação Escola de Sociologia Política de São Paulo.
CAMURÇA, Marcelo. Marretas, molambudos e rabelistas: a revolta de 1914 no Juazeiro. São Paulo: Maltese, 1994.
DELA CAVA, Ralph. Milagre em Joaseiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.
FACÓ, Rui. Cangaceiros e fanáticos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976.
JANOTTI, Maria de Lourdes M.   O Coronelismo, uma Política de Compromissos. São Paulo, Editora Brasiliense S.A., 1981, p. 73.
LIRA NETO. Padre Cícero: poder, fé e guerra no sertão. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
LOPES, Regis. Caldeirão. Fortaleza: Eduece, 1991.
MACEDO, Joaryvar. Império do bacamarte: uma abordagem sobre o coronelismo no Cariri. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, 1990.
MOREL, Edmar. Padre Cícero: o santo de Juazeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966. 
PINHEIRO, Irineu. Efemérides do Cariri. Fortaleza: Imprensa Universitária do Ceará, 1963.
XAVIER DE OLIVEIRA, Amália. O Padre Cícero que eu conheci. Rio de Janeiro: Gráfica Olímpica Editora Ltda., 1969.   

O AUTOR

Daniel Walker é natural da cidade de Juazeiro do Norte, Ceará, onde nasceu em 6 de setembro de 1947. É formado em História Natural pela Faculdade de Filosofia do Crato, com Curso de Especialização em História do Brasil pela Universidade Cândido Mendes, do Rio de Janeiro. Professor Adjunto aposentado da Universidade Regional do Cariri-URCA. Desenvolve também atividade como jornalista com trabalhos publicados pela imprensa juazeirense e de Fortaleza. Em 1995 fundou o jornal eletrônico Juaonline, a vitrine da história de Juazeiro do Norte, rebatizado em 2008 com o nome de www.portaldejuazeiro.com É pesquisador da vida do Padre Cícero e de Juazeiro do Norte sobre quem já publicou os seguintes livros:
e-mail: danielwalker47@gmail.com

quarta-feira, 18 de maio de 2016

Perspectiva do bem de consumo Padre Cícero - Por Michael M. Marques

Partindo da premissa dos estudos da cultura material, que trabalham através da perspectiva dos objetos materiais, há uma tentativa de compreender, de forma mais profunda, os signos e significados do consumo. Tal estudo tem ajudado a demonstrar como o mundo é provido de objetos materiais que contribuem para a sua constituição cultural e a refletem, como categorias culturais são materializadas[1]. (MACCKREN, 2007). Perceber a materialidade não distante da humanidade, sobretudo, teorizar e analisar essas relações de consumo enquanto elementos de identificação e demonstração diversificada de consumo sobre uma mesma coisa se faz necessário para a busca de uma análise profunda e complexa. 

É importante frisar a dificuldade em buscar uma identidade social a partir do consumo, devido à relação entre objetos e mercadorias, e as abordagens que enfatizam seus usos como marcadores e constituintes de um processo cultural que se constrói articulando muitos atores, construindo e consolidando sentidos, apresentando importante tradição de estudos na antropologia recente, especialmente aqueles que analisam o protagonismo dos consumidores a partir da aquisição de bens materiais.

Busco perceber a importância do consumo da estátua do Padre Cícero para o desenvolvimento do comércio local como representação simbólica e mitológica, na noção de habitus[2] proposta por Bourdieu. Dentro da teoria do poder simbólico, o habitus é o elemento que articula “os sistemas simbólicos como estruturas estruturadas (passíveis de uma análise estrutural)” e as estruturas estruturantes, ou seja, a “concordância das subjetividades estruturantes” (BOURDIEU, 2005, p. 8). Tais estruturas estão presentes na construção histórica dos espaços social em Juazeiro do Norte, a partir do conceito do Bourdieu, como: mito, arte, língua, religião, ciência. Para Bourdieu (2009), os sistemas simbólicos são instrumentos de conhecimento e de comunicação só podem exercer um poder estruturante porque são estruturados. Os símbolos são instrumentos de conhecimento e comunicação e eles tornam possível a reprodução da ordem social. Os símbolos são os instrumentos por excelência da integração social, eles tornam possível o consenso sobre o sentido do mundo social que contribui para a reprodução da ordem social: a integração lógica é a condição da integração moral.

Assim podemos dizer que em Juazeiro do Norte, acontece a elaboração do fato social total. (MAUSS, 2005), o conceito do fenômeno ou fato social total sugere que o objeto real das ciências sociais é o estudo da realidade social, ou seja, um conjunto de fenômenos que se produzem e reproduzem no interior de uma sociedade, designados como fenômenos sociais. Portanto podemos perceber que todas as dimensões do real social são peças de encaixe, e, apesar de cada ciência estudar a área que lhe compete, o fenômeno social é total e só é explicado completamente com a junção de todas as dimensões, nunca se esgotando completamente com o estudo de uma só ciência. Daí que possa dizer-se que, separadas as ciências estudam o que lhes compete e juntas complementam-se. O social é um todo, englobando diferentes tipos de relacionamento entre indivíduos e entre o mundo que os abrange. Como um fato social total (MAUSS, 2011), apresenta-se nos mais distintos e diversificados aspectos da vida social: econômicos, políticos, sociais, culturais, jurídicos, de direito, morais, religiosos, domésticos, infraestrutura e estéticos. É diante essas características apresentadas pelo fato social total que está localizado o consumo do bem, o Padre Cícero, na cidade de Juazeiro do Norte, por seus visitantes e citadinos.

Nesse sentido, podemos pensar o consumo a partir da perspectiva da identificação social, não podendo ser visto como uma ação coerente. Visto que a sociedade pós-moderna localiza-se dentro de uma dificuldade de identificar uma sistemática bem elaborada do consumo, do ato de consumir. Pois existem diferentes demandas, demandas contraditórias nos setores da vida. O consumo não é coerente, pois o mesmo lida com subjetividade que aponta para o indivíduo espontâneo, relacional e ativo. 

Desta forma, podemos pensar a prática de consumo não destituída em um vazio cultural. Elas estão inseridas em um espaço, um contexto, e são instruídas por lógicas sociais que dão sentido as práticas em determinados contextos. Não são ações voluntaristas, as mesmas tendem a identificar e estruturar a vida social, o cotidiano, mesmo em um mundo repleto de permanentes transformações. Elas (práticas de consumo) estão alocadas em um conjunto de oportunidades, que dificilmente serão mudadas. Essas escolhas por não serem voluntárias, irão variar dentro de uma variabilidade em que o campo social oferece. 

Obs: Este texto faz parte da construção da dissertação, cujo título é: ENTRE O TRECO E A CIDADE. ESTUDO ANTROPOLÓGICO SOBRE O CONSUMO DAS ESTÁTUAS DO PADRE CÍCERO EM JUAZEIRO DO NORTE-CE

Referências bibliográficas
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. 11 Ed. São Paulo: Editora Bertrand Brasil, 2007.
________________. A economia das trocas simbólicas. 3. Ed. São Paulo: Perspectiva, 2009.
________________. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp; Porto Alegre, RS: Zouk, 2007.
MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva. Lisboa: Edições 70 LDA, 2011.
McCRACKEN, G. Cultura e Consumo: Uma explicação teórica da estrutura e do movimento do significado cultural dos bens de consumo. Revista de Administração de Empresas – RAE, v. 47, n. 1, p. 99-115, jan./mar. 2007. 
MACCRAKEN, Grant. Cultura e consumo: novas abordagens ao caráter simbólico dos bens e atividades de consumo. Rio de Janeiro: Mauad, 2003.
MILLER, Daniel. Consumo como cultura material. Horizontes Antropológicos, Ano 13, n. 28, 2007.

MILLER, Daniel. Treco, troços e coisas. Estudos antropológicos sobre a cultura material. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 2013

[1] Vê mais em: McCRACKEN, G. Cultura e Consumo: Uma explicação teórica da estrutura e do movimento do significado cultural dos bens de consumo. Revista de Administração de Empresas – RAE, v. 47, n. 1, p. 99-115, jan./mar. 2007.

[2] De acordo com o autor, as estruturas sociais por si só não determinam a vida em sociedade como pretendiam os estruturalistas. A dimensão individual, o agente social – e daí decorre a importância do conceito de “habitus” reintroduzido por Bourdieu – não é uma simples consequência das determinações da estrutura social. Internalizamos regras e normas sociais, mas existem aspectos de nossas condutas que não são previsíveis. É como um jogo que sabemos as regras e o seu sentido, mas que também podemos improvisar. A noção de “habitus’ exprime, sobretudo, (...) a recusa a toda uma série de alternativas nas quais a ciência social se encerrou a da consciência (ou do sujeito) e do inconsciente, a do finalismo e do mecanismo”. (BOURDIEU, 1989, p.60).

O AUTOR
Professor da rede estadual de ensino do Ceará
Estudante do Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)


Email: michaelmarques.cs@hotmail.com

quinta-feira, 3 de março de 2016

Carta de Reconciliação do Padre Cícero gera polêmica

A divulgação de uma notícia na imprensa segundo a qual três pesquisadores (Dr. Lauro Barreto, Pe. Neri Feitosa e o professor José Sávio Sampaio) contestam o conteúdo da carta sobre a reconciliação do Padre Cícero, divulgada no ano passado pela Diocese do Crato, está causando grande repercussão na imprensa e nas redes sociais. Abaixo transcrevemos um artigo na historiadora Anne Dumoulin, profunda conhecedora da história do Padre Cícero, o qual representa sua opinião abalizada sobre a polêmica em questão, contestando as argumentações dos pesquisadores. Em seguida transcrevemos artigo do escritor Paulo Machado que segue a linha dos três pesquisadores citados na matéria polêmica.

“A reconciliação da Igreja com Padre Cícero é claramente um reconhecimento que a opinião que a Igreja tinha sobre este sacerdote estava errada e a carta apresenta diversas virtudes do Padre até mesmo apresentando-o como um modelo para a nova evangelização, para uma Igreja em saída! Claro que como todo ser humano, Padre Cícero não foi privado de erros e falhas durante sua longa existência de 90 anos! O Cardeal não desvaloriza as pesquisas e a análise dos pontos de controversos! Ainda tem trabalhos, prezados pesquisadores que somos! Mas a carta é pastoral vai ao centro da questão que são os frutos bons da missão sacerdotal do Padre Cícero! Basta citar aqui as frases seguintes: " Sem dúvida alguma, Padre Cícero foi movido por um intenso amor pelos pobres e por uma inquebrantável confiança em Deus... Ele procurou agir segundo os ditames de sua consciência, em momentos e circunstâncias bastantes difíceis.... É necessário, neste contexto, dirigir nossa atenção ao Senhor e agradecê-lo por todo o bem que ele suscitou por meio do Padre Cícero." 

Por favor... Um pouco mais de leitura teológica, esta vez, para reconhecer que a Igreja fez mais do que reabilitar (aliás, como reabilitar um falecido, reabilitar a celebrar a missa de novo? ) o Padre Cícero: ela, oficialmente, reavaliou e apreciou várias dimensões de sua vida como sacerdote... E não são poucas virtudes! Então, a Igreja não perdoou... Porque não tinha nada a perdoar... Tinha que corrigir uma visão errada e negativa que tinha do Padre Cícero, no passado! Ela não reabilitou Padre Cícero, pois as medidas disciplinarias são medidas que valem apenas neste mundo e não no Outro! A reconciliação com Padre Cícero é muito mais bonita, linda! Não se trata de beatificação, de canonização! O Papa fez um ato de JUSTIÇA, não somente em relação ao Padre Cícero mas também em relação aos seus romeiros tratados injustamente de fanáticos, ignorantes! Aliás, é a partir deles que o Papa está relendo a missão sacerdotal do Padrinho... A gente reconhece a árvore pelos seus frutos!”

Para entender a polêmica leia abaixo a notícia que a provocou.

Diocese de Crato, no Ceará, diz que cartas são provas do perdão a Padim Ciço, excomungado após "milagre da hóstia"

Uma polêmica e tanto agita os bastidores da Igreja Católica. Especialistas em processos canônicos contestam o alarde que a Diocese de Crato, no Ceará, a dez quilômetros de Juazeiro do Norte, vem fazendo em torno de duas cartas do Vaticano. Na visão da Cúria local, as correspondências garantem que Roma concedeu a tão sonhada reconciliação da Igreja com o Padre Cícero Romão Batista, um dos candidatos a santos mais populares do Brasil.

Padre Cícero foi excomungado pelo bispo do Ceará, Dom Joaquim Vieira, acusado de manipulação da fé. Ele não conseguiu fazer com que a Igreja reconhecesse o "milagre da hóstia” — as comunhões dadas por ele à beata Maria de Araújo teriam se transformado em sangue.

Como castigo, foi proibido de pregar, ouvir confissões e celebrar missas. Morreu em 1934, aos 90 anos, sem ter esses direitos restabelecidos como sacerdote. Após sua morte, o número de fiéis em romarias à cidade que ele fundou, Juazeiro do Norte, cresceu e transformou as peregrinações num dos maiores encontros de fé do País.

Para críticos, porém, ambas não endossam que o Papa Francisco tenha concedido de fato o perdão, transformando o episódio “numa possível farsa”, que seria alimentada pelo bispo de Crato, Dom Fernando Panico.

Em carta de sete páginas, de 20 de outubro de 2015, assinada pelo secretário de Estado do Vaticano, Pietro Parolin, e endereçada a Panico, a diocese interpreta trechos como sinônimo de reconciliação. Principalmente o que diz: “Mas é sempre possível, com a distância do tempo, reavaliar e apreciar as várias dimensões que marcaram a ação do Padre Cícero como sacerdote”.

Ao divulgar tal carta (íntegra em www.diocesedecrato.org), em dezembro, com festa para 50 mil devotos, o bispo fez o milagre de triplicar as romarias no Sertão do Cariri e a arrecadação para os cofres da Mitra Diocesana.

“Em momento algum o Vaticano fala em reabilitar, reconciliar ou perdoar o Padim Ciço. Apenas realça as qualidades de Cícero, nada mais. É embromação”, diz o advogado Lauro Barretto, devoto fervoroso do Patriarca do Nordeste. Como estudioso de processos canônicos, Barreto escreveu um livro que será lançado em abril.

Questionado pelo DIA, Armando Lopes Rafael, chanceler do bispado do Crato e porta-voz de Dom Panico, entregou à reportagem outra carta inédita, em italiano. Datada de 5 de setembro de 2014 e assinada pelo prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, cardeal Gerhard Müller, “comunicando”, segundo ele, a conciliação.

“O Papa raramente assina cartas, delegando essa tarefa ao secretário de Estado. Existe uma minoria que não gostou da reconciliação da Igreja com o Padre”, lamentou Armando. “Essa carta de 2014 não garante a reconciliação. A Diocese de Crato interpretou errado as duas cartas”, diz Lauro.

Jornal do Vaticano não deu a notícia
Em 2006, dom Fernando Panico formou uma comissão e deu entrada na Congregação para Doutrina da Fé, no Vaticano, no processo de reabilitação. A polêmica em torno da interpretação das cartas começa quando, com base nos estudos realizados pela Equipe de Direito Canônico do Vaticano, o Papa Francisco ventilou que a Igreja deveria conceder a reconciliação de Padim Ciço com a Igreja.

“Fico feliz por receber essa grande graça”, diz dom Panico num texto postado no site da Diocese. Reconciliação significa que a Igreja apaga qualquer oposição às ações de Padre Cícero.

Nenhuma agência de notícias oficial do Vaticano, entre elas a Gaudium Press, tocou na possível reconciliação. Para o historiador e professor José Sávio Sampaio e o padre Nerí Feitosa, maior biógrafo de Padre Cícero não há provas de que a Igreja fez as pazes com Padim Ciço. “Não há documento assinado pelo Papa Francisco, que diz claramente que a Igreja se reconciliou com Padre Cícero”, diz Sávio. “Sugerir uma reconciliação não significa que ela tenha se dado de fato”, diz Nerí
Severino Silva / Agência O Dia

BREVE COMENTÁRIO SOBRE A “CARTA DE RECONCILIAÇÃO COM O PADRE CÍCERO” divulgada pela DIOCESE DE CRATO.
Por Paulo Machado

Inicialmente cumpre destacar que a referida CARTA NÃO FOI ASSINADA PELO PAPA FRANCISCO e, sim, pelo Secretário de Estado da Santa Sé Cardeal Pietro Parolin. 
Essa Carta, deixa bem claro que “não é intenção ... pronunciar-se sobre questões históricas, canônicas ou éticas do passado” afetas ao PADRE CÍCERO ROMÃO BATISTA.
. Aliás, o próprio Cardeal Paroli adverte o Bispo do Crato, para que ele tivesse o zelo e o cuidado, na “AUTÊNTICA INTERPRETAÇÃO DA MESMA” ao divulgá-la. 
Mas estão dando uma maior dimensão a Carta do Cardeal Paroli
O Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro-RJ Cardeal Orani João Tempesta, chama a atenção para o fato de a referida Carta “aponta o lado benemérito” da figura do Padre Cícero, visto apenas do ponto de vista eminentemente pastoral e religioso. É este fato, segundo o Cardeal Tempesta, “que a imprensa chamou de REABILITAÇÃO DO PADRE CÍCERO” ou RECONCILIAÇÃO como apregoa a DIOCESE DE CRATO. NÃO FOI. 
O Padre Cícero, na visão da Igreja Católica continua sendo, segundo a CARTA do Cardeal PAROLI , “UM VASO DE ARGILA”, uma figura “NÃO PRIVADA DE FRAQUEZA E DE ERROS”, uma pessoa que “NEM SEMPRE SOUBE ENCONTRAR AS JUSTAS DECISÕES A TOMAR OU ADEQUAR-SE ÀS DIRETRIZES QUE LHE FORAM DIRIGIDAS PELA LEGÍTIMA AUTORIDADE”, e, ainda, que outros aspectos do Padre Cícero “PODEM SUSCITAR PERPLEXIDADE.” . Mas o Cardeal Paroli não deixa de exaltar que às vezes, “DEUS ESCREVE CERTO POR LINHAS TORTAS” E SE SERVE DE INSTRUMENTOS IMPERFEITOS PARA REALIZAR A SUA OBRA (CF.LC 17:10)”
É nesse aspecto, segundo Paroli, que a Igreja Católica e mais precisamente a DIOCESE DE CRATO se serve ou tem incorporado esse movimento popular e da imagem do Padre Cícero para ir “ao encontro das periferias existenciais”, “para a solidificação da fé católica no ânimo do povo nordestino” .
Segundo Paroli, o Padre Cícero continua sendo “ objeto de estudos e análise, como atesta a multiplicidade de publicações a respeito, com interpretações as mais variadas e diversificadas”. 
NÃO HOUVE, PORTANTO, RECONCILIAÇÃO DA IGREJA com o PADRE CÍCERO. O Cardeal Paroli conclui: “ MAS É SEMPRE POSSÍVEL, COM A DISTÂNCIA DO TEMPO E O EVOLUIR DAS DIVERSAS CIRCUNSTÂNCIAS, REAVALIAR E APRECIAR AS VÁRIAS DIMENSÕES QUE MARCARAM A AÇÃO DO PADRE CÍCERO.
RECONCILIAÇÃO E O PERDÃO DA IGREJA PARA COM O PADRE CÍCERO PODEM ATÉ OCORRER NO FUTURO, ESPERAMOS TODOS. MAS, no momento, com todo respeito a quem pensa de forma diversa: NÃO HOUVE. 
PAULO MACHADO
(AUTOR DE “PADRE CÍCERO ENTRE OS RUMORES A A VERDADE”

Polêmica boba em torno da carta de reconciliação do Padre Cícero
“O Padre Cícero é um cruciante ponto de interrogação”. Esta frase dita por Monsenhor Azarias Sobreira, autor do livro Padre Cícero, o Patriarca de Juazeiro, no século passado, permanece atual e cada vez mais oportuna.
Durante muito tempo, principalmente nos livros, Padre Cícero foi sempre analisado obedecendo a uma invariável dicotomia de juízos diametralmente opostos: de um lado, sendo atacado com radicalismo por quem não lhe reconhece nenhum valor; de outro, sendo exaltado com exagero por quem lhe confere muitas qualidades.
Ultimamente, porém, depois que os cientistas sociais passaram a estudá-lo, sua figura real começou a ser delineada dentro de uma nova ótica de observação e análise. E, ao que tudo indica nessa nova visão Padre Cícero é mostrado com os defeitos comuns aos homens normais e as virtudes inerentes aos homens extraordinários. Tudo dentro da lógica, conduzido sem paixão, para que, um dia, quem sabe, ele finalmente deixe de ser, usando a expressão de Padre Azarias Sobreira: um cruciante ponto de interrogação.
Tudo na vida do Padre Cícero gera polêmica. É assim desde que nasceu. Agora surge uma nova polêmica justamente porque surgiu um fato novo na sua história. E mais uma vez tem a Igreja como protagonista. É a tão propagada carta de sua  reabilitação com a Igreja que para alguns historiadores deve ser catalogada no arquivo com o nome de “suposta”, o mesmo que arquiva o milagre da hóstia. Assim, para muitos historiadores Padre Cícero é um suposto santo, um suposto líder, um suposto milagreiro e agora um suposto reconciliado. Sua via crucis parece não ter fim e ele mesmo já antevia isto quando disse:  “Tomei o propósito, desde o começo desta enorme perseguição contra mim, de entregar tudo a Deus e a Nossa Senhora das Dores e não me defender de coisa alguma”.
Diante dessa polêmica que a carta de reconciliação do Padre Cícero gerou podemos intuí que ela virou polêmica por vários motivos, alguns dos quais mencionamos a seguir:
1) Não é um decreto da Congregação para doutrina da fé
2) Não foi assinada pelo Papa
3) Não traz explicitamente a palavra reconciliação
4) Não foi notícia na imprensa oficial do Vaticano
5) Ela foi conseguida pelo esforço do bispo D. Fernando ancorado no estudo da comissão que ele nomeou para elaborar e enviar o processo de reabilitação histórica e eclesial do Padre Cícero.
Parece que este último ponto está bem explícito no bojo das discussões que se dissemina na imprensa e nas redes sociais, dando a entender que agora o foco da questão polêmica não é mais o Padre Cícero e sim, o bispo da diocese do Crato.  E isto é fácil de perceber, quando a gente vê os nomes dos defensores e dos contestadores da agora (lamentavelmente) famigerada carta de reconciliação.
Se a discussão prosperar por este caminho ficará evidentemente pessoal e não levará a lugar nenhum, e não trará contribuição histórica importante para a biografia do Padre Cícero.
Por isso, no intuito de oferecer alguma contribuição para estancar as animosidades, mas sem intenção de participar de nenhum dos grupos antagônicos que a questão gerou, ousamos fazer as seguintes ponderações:
1) O fato de ser uma carta e não um decreto isto parece ser de somenos importância
2) Não ser assinada pelo Papa é irrelevante, pois o cardeal que a assinou tinha credenciais para representar o pensamento de Sua Santidade sobre o assunto]
3) A palavra reconciliação não está explica, mas os argumentos contidos induzem a tal porque as virtudes do Padre Cícero foram evidenciadas, sua pastoral foi elogiada e as romarias foram exaltadas como sendo bons frutos.
4) A imprensa oficial do Vaticano não divulgou o assunto, mas também não se pronunciou até agora condenando quem divulgou a carta como sendo de reconciliação.
5) Mesmo que traga constrangimento a alguns historiadores,  D. Fernando tem, sim, algum mérito nessa questão, pois foi ele quem fez oficialmente o pedido de reconciliação histórica e eclesial do Padre Cícero à Congregação para a doutrina da fé, mesmo tendo recebido argumentos contrários apresentados por figuras do clero, algumas delas da sua diocese.

Diante do exposto, vamos deixar de lado essa polêmica boba e infrutífera; vamos aceitar a carta como sendo mesmo de reconciliação, afinal o Vaticano não contestou que assim pensa; vamos vibrar com a carta pois ela é um documento que reconhece virtudes do Padre Cícero, aprova sua pastoral, o tem como exemplo a ser seguido e exalta as romarias; foi escrita com autorização do Papa como manifestação expressa do seu pensamento e por fim, vamos todos dar graças a Deus pelo Padre Cícero que temos.
Então, cantemos juntos: Viva meu Padim, via meu Padim, Cícero Romão.
E chega de polêmica besta que não leva a nada.
Daniel Walker

Em tempo: Este artigo já estava escrito quando tomamos conhecimento de que na solenidade de divulgação da carta D. Fernando fez menção a um decreto  emitido pela Congregação para doutrina da fé, cuja tradução do italiano é a  seguinte:

CONGREGAZIONE PER LA DOTTRINA DELLA FEDE

00120 Città del Vaticano
Palazzo del S. Uffizio
27 de outubro de 2014
Protocolo no. 319/14-48388

Excelência Reverendíssima:
Na data de 30 de maio de 2006, Sua Excelência entregou na sede desta Congregação um edido endereçado ao Santo Padre para a reabilitação canônica do Pe.Cícero Romão Baptista (1844-1934). Essa petição era acompanhada de uma igual petição formulada pela CNBB durante a sua 44ª. Assembleia Geral, de-17 de maio de 2006. O pedido também foi acompanhado de uma abundante documentação, fruto do estudo de uma especial Comissão de Estudos para a reabilitação histórico-eclesial do Pe. Cícero Romão Baptista.

Este Dicastério, valendo-se também do parecer de alguns especialistas na matéria, não deixou de submeter a um cuidadoso estudo os documentos acima, confrontando-os com os documentos originais conservados neste arquivo da Congregação, relacionados com os eventos que levaram a Santa Sé a censurá-lo em alguns aspectos de sua vida. As conclusões do
estudo foram submetidas à Sessão Ordinária da Congregação, realizada em 2 de julho de 2014, que decretou o que segue:

TODOS: São consideradas justas e justificadas as medidas disciplinares que a seu tempo foram exaradas pela Santa Sé no processo de Pe. Cícero, e que foram mantidas até sua morte, e por isso não se pode atender ao pedido de reabilitação do sacerdote.

TODOS: Considera-se oportuna, entretanto, a forma de “reconciliação histórica”, que leve em conta todos os aspectos da vida humana e sacerdotal do Pe. Cícero, e traga à luz o lado positivo da sua figura.

O Santo Padre Francisco, durante a Audiência de 5 de setembro de 2014 aprovou a decisão acima e pediu que seja preparada uma Mensagem por um organismo da Santa Sé, endereçado aos fiéis dessa diocese, que agora está celebrando o primeiro centenário de sua elevação. Com essa iniciativa se poderá operar a desejada “reconciliação histórica”, possibilitando uma serena apresentação geral da figura histórica, sacerdotal e apostólica do Pe. Cícero, no contexto da devoção mariana e eucarística dos peregrinos de Juazeiro do Norte.

Tendo em vista a preparação de tal Mensagem, peço-lhe gentilmente para fornecer aqueles elementos que, a seu critério, fazem hoje do Pe. Cícero uma figura a ser valorizada do ponto de vista pastoral e religioso.

Gerard Müller
Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé

Pronto, gente, aí está o decreto. O decreto diz que Padre Cícero não pode ser reabilitado e está correto, pois a sua reabilitação só teria sentido se ele estive vivo para poder desfrutar do prazer de voltar a celebrar e praticar os outros diretos que todo sacerdote ativo tem. Como reabilitar não é possível, então o decreto "Considera-se oportuna, entretanto, a forma de “reconciliação histórica”, que leve em conta todos os aspectos da vida humana e sacerdotal do Pe. Cícero, e traga à luz o lado positivo da sua figura."
Será que isso põe fim a polêmica ou vai alimentá-la mais ainda?

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Padre Cícero Romão Batista - Por Antonio Carlos Siufi Hindo

Fonte: http://www.progresso.com.br/opiniao/padre-cicero-romao-batista

Na região mais pobre do sertão cearense, especificamente na cidade de Juazeiro do Norte, um padre de origem humilde transformou a vida de um punhado de pessoas, que viviam desesperadas, sem norte e sem nenhum destino numa quadra de esperança e de vida. Naquela rotina dramática o sertanejo resignado com a sua própria sorte outra alternativa não lhe restava senão lutar e de se apegar com Deus e com a sua fé para continuar vencendo os desafios que o destino reservava para cada um deles.

Foi nessa quadra de sofrimento e dor intenso que Deus na sua onipotência divina reservou para a vida daquela população a ação sempre santa das suas mensagens transubstanciada na pessoa física de Cícero Romão Batista. E tudo transcorria na mais absoluta normalidade na vida daquele povo, até o dia em que um hóstia consagrada colocada na boa da beata Maria de Araujo, se transformou em sangue. Pronto. Foi o que bastou para que a Igreja da época remetesse o sacerdote à condição de um visionário. Nada mais perverso. O tema desnudou a face mais retrógada dos principais líderes religiosos da Igreja Católica de então transubstanciada na inveja de seus pares. Foi essa mesma inveja incrustrada no coração das pessoas ao longo da história da civilização, que impediram o Cristo de realizar os seus milagres em sua cidade natal.

A inveja continua presente e viva no seio da nossa sociedade. Ela está em todas as oficinas de trabalho, nas relações pessoais, nas relações sociais, e em todos os outros campos de atividade em que estiver envolvido o ser humano. Não temos outra saída, a não ser conviver com o seu ranço que nos estigmatiza e transfigura a nossa alma.

Mas, o que fizeram com o padre Cícero em nenhum momento desencantou o valor da crença, da fé, da confiança, que aquele verdadeiro homem de Deus conseguiu despertar no seio daquela população sofrida. Esse fato é a mais contundente de todas as provas de que a fé das pessoas não precisa de nenhum tipo de prova para aceitar como verdadeiros os ensinamentos que lhes são ministradas por vocação divina. E o Papa Francisco voltou novamente a surpreender o mundo ao perdoar o santo de Juazeiro do Norte de todas as punições que lhe resultaram impostas pela igreja católica entre os anos de 1.892 e 1.926, em nosso território nacional.

A fé daquele povo sofrido pelo seu conselheiro continua inquebrantável. Suas palavras continuarão sendo a sentinela mais forte a animar os homens de bons propósitos a acreditar na vida e fazer dela um raio de luz para os que vivem na escuridão. A ação papal resultou digna dos melhores elogios e sinalizou para um outro dogma de regular a importância: ninguém salva ninguém a não ser os nossos atos, as nossas ações, os nossos sentimentos, nobres e elevados e o desejo sempre presente de auxiliar o nosso semelhante a encontrar o seu destino de grandeza e de esperança.

O perdão é a palavra mágica que nos salva e nos redime. Foi ele o grito tresloucado daquele que deu sua própria vida para nos salvar. Francisco sabe interpretar como ninguém esses fatos. O seu papado está sendo considerado por muitos como verdadeiro divisor de águas no seio da Igreja Católica. Isso é muito bom e alvissareiro.

É o prenuncio que a Igreja pode ainda oferecer novas e surpreendentes ações de um homem que, tendo saído da cidade de Buenos Aires rumo à cidade do Vaticano para escolher um novo pontífice por lá permaneceu para ser ele próprio o grande vetor da paz, da concórdia e da união entre os povos e as nações ao redor do mundo.
Promotor de Justiça aposentado. e-mail: dr.hindo@hotmail.com

sábado, 6 de fevereiro de 2016

“Tiramos o pe. Cícero do escuro da história”, disse Dom Fernando Panico

ZENIT, órgão da imprensa romana,  entrevista o bispo da diocese de Crato, Dom Fernando Panico. Temas: Igreja pede perdão ao pe. Cícero; diferença entre perdão, reconciliação e reabilitação; atividades políticas; padre e pastor; riquezas; acusações e perseguições; nove volumes de trabalho investigativo; dentre outros…

Cícero Romão Batista jamais soubera que um dia fora excomungado e, posteriormente, absolvido da pena, teve contato com Lampião, convidou Luis Carlos Prestes à rendição, movimentou o Nordeste Brasileiro, arrebanhou corações para Jesus Cristo, demonstrou-se sempre humilde e obediente perante as autoridades eclesiásticas, e, na impossibilidade de exercer o seu sacerdócio ministerial, tornou-se o “padrinho” de uma multidão órfã de pai. Essas e outras virtudes são muito bem demonstradas pelo jornalista Lira Neto na biografia mais completa já escrita sobre o santo popular: “Pe. Cícero, poder, fé e guerra no sertão”, Companhia das Letras.

Logo após a última missa celebrada na terra pelo “Padim” (como lhe chamavam os devotos, regionalismo de “padrinho”), no dia 4 de junho de 1921, minutos depois recebia o ofício diocesano que o proibia de exercer qualquer atividade como sacerdote dali por diante, até quando falecera em 20 de julho de 1934, tendo cumprido 90 anos.

“Instituo meu único e universal herdeiro a Santa Sé, representada na pessoa de Sua Santidade, o Papa, sendo o meu desejo que Sua Santidade aceite esta minha disposição de última vontade, incorporando a universalidade de minha herança ao patrimônio da mesma Santa Sé”, registrara alguns anos antes, em seu 1º testamento, lavrado no cartório em abril de 1918.

Testamento modificado em outras duas ocasiões, quando, em sua 3ª edição definitiva, deixou a Pia Sociedade de São Francisco de Sales como sua principal herdeira, com a condição de criar escolas e institutos de ensino e educação em Juazeiro. Acusado de escravizar os fieis na ignorância, esse mesmo sacerdote deixara metade da sua riqueza – não pouca, e doada por coronéis e romeiros ao longo da vida – para a educação dos concidadãos, e a outra metade para várias instituições religiosas da região.

Morreu paupérrimo, relatou a ZENIT Dom Fernando Panico, a ponto que os coronéis tiveram que fazer uma vaquinha para pagar o seu enterro.

Durante mais de um século atacado e manchado por intelectuais de todos os lados políticos e eclesiásticos. Durante mais de um século atraindo multidões, milhares de romeiros ao seu encontro, em vida, e mais ainda depois de morto, chegando aos milhões por ano atualmente… E sempre do lado de fora das Igrejas e dos templos.

O Nordeste inteiro, e não só, tem o nome do santo nas ruas, nas praças, nos monumentos… e somente nesse último fim de semana, quase 100 anos após a sua morte, pela primeira vez na história, um quadro do Padim Ciço entrou em procissão, passando pela Porta Santa da Basílica Nossa Senhora das Dores, no contexto do Ano Santo da Misericórdia.

A região do Cariri é um autêntico oásis de fauna e flora em meio a um deserto – principalmente para quem cruza de carro do litoral do Ceará ao interior, como foi o meu trajeto ao visitar essa cidade nesse último mês de Janeiro de 2016 e entrevistar pessoalmente Dom Fernando Panico para ZENIT.

Ao som dos passarinhos, pé da Chapada do Araripe, na sede no recém fundado seminário de Crato e Casa de Repouso Sacerdotal, sentados em uma varanda refrescante, às 10h da manhã.

Os entrevistados foram: Pe. José Vicente Pinto, vigário geral da Diocese de Crato, e Dom Fernando Panico, bispo diocesano.

Após uma conversa introdutória muito enriquecedora, Dom Fernando Panico dignou-se responder às minhas perguntas.

O contato com um povo humilde, acolhedor, muitas vezes órfão de tudo, e que se aproxima da gigante imagem do Pe. Cícero na colina do horto para pedir proteção, inspira a unir a voz com um dos cantores da região, Jota Farias, deixando Juazeiro para uma outra vez voltar e com um novo CD no rádio:
“No caminho da fé o povo não se cansa.
Quem anda com jesus nunca perde a esperança.
Somos romeiros vivemos a caminhar
Visitando o juazeiro com Jesus nos encontrar
Confessar nosso pecado e assim nos libertar
E a cantar no santuário alegria de chegar”.

Acompanhe abaixo a entrevista completa concedida a ZENIT:
ZENIT: Vamos definir termos. Qual a diferença entre reconciliação, reabilitação, perdão, no caso do Pe. Cícero? (Nessa primeira resposta Dom Fernando Panico fez um apanhado geral sobre as principais questões relativas ao Pe. Cícero, acusado de rico, político, desordeiro, etc.)

Dom Panico: Começo a fazer um pouco o histórico, o relatório, desse processo que foi enviado a Roma no ano 2006 e entregue ao Papa emérito Bento XVI.

Nós, atendendo à própria sugestão que veio da Congregação para a Doutrina da Fé, enveredamos o processo todo sob a égide do nome reabilitação. Foi um nome que nasceu assim, do diálogo com o cardeal Ratzinger, com o secretário dele, Dom Bertone, hoje cardeal, então eu fiquei com esse nome: “reabilitação”.

E voltando para o Brasil depois daquela visita à Roma para tratar do assunto em questão reuni, graças à cooperação também da CNBB, uma equipe de estudiosos de todo o Brasil. Não só daqui da região do Ceará ou do Cariri. Eu queria formar uma comissão de estudiosos livres de preconceitos ou de paixões para que me ajudassem a formar um conceito, por quanto possível objetivo sobre tudo o que ocorreu ao redor do Pe. Cícero.

Então, reunindo essa comissão insistimos sobre o nome “reabilitação”. Todo o nosso trabalho visava, sem nos darmos conta, talvez, da diferença que depois foi mostrada pelo Papa Francisco, continuamos trabalhando em vista de uma reabilitação.

Ao mesmo tempo começaram as críticas dos intelectuais que sabendo dessa comissão, dos estudos que estávamos realizando – estudos de pesquisa, nos arquivos de todo tipo que pudessem ter referência ao pe. Cícero.

É a Igreja que deve reabilitar-se com o Pe. Cícero

Então, as críticas diziam: “reabilitar”? “reabilitar o quê?”, é a Igreja que deve se reabilitar com o pe. Cícero porque foi a Igreja que condenou o pe. Cícero e, portanto, deve reconhecer a história como foi a partir de certas atitudes que ela, a Igreja, tomou. Então nasceram aquelas indiretas próprias do mundo acadêmico.

Pe. Cícero, homem polivalente, culto

Fizemos também simpósio internacional sobre a figura do pe. Cícero e ressaltando a figura e a importância do pe. Cícero sob diversos enfoques, não só o enfoque da religiosidade, mas também o enfoque do homem polivalente, culto, que já naquela época entendia de tudo e, portanto, sabia aconselhar os pobres lavradores que fugiam da seca para resistir às calamidades da natureza, aonde, então, deviam plantar, como deviam plantar, aonde se podia encontrar água, como defender a natureza, para que a natureza não virasse o deserto… Já se falava na época do pe. Cícero em desertificação. E se falava do problema da água, se falava do problema da ecologia. Pe. Cícero que pedia para não fazer queimas de roças, que a terra é mãe, que não devia ser violentada pelo fogo, mas que os lavradores tivessem outros processos mais naturais para repousar a terra e dar à terra mais riqueza para produzir.

Pois bem, o pe. Cícero foi estudado sobre muitos aspectos.

Reabilitação… é Igreja que deve se reabilitar com o seu filho que foi colocado à margem, foi exilado, foi – digamos assim – não reconhecido.

Resultado dos trabalhos de investigação: nove volumes e uma resposta papal

Mas, apesar de todas essas críticas nós concluímos os nossos trabalhos, depois de quase quatro anos de estudos e apresentamos à Congregação da Doutrina da Fé no ano de 2006 nove volumes, nove volumes! Não fomos com pouco papel não! (sorriu Dom Fernando).

Nove volumes coletando tudo o que podíamos ler e saber sobre o pe. Cícero, incluindo também toda a correspondência dele, as cartas dele, e as cartas de outros a respeito dele, alguns a favor e outros contra, então, juntamos tudo e foi para Roma e, assim, no ano passado de 2015, depois de muita espera e muita insistência de minha parte, chegou a resposta. Uma resposta muito – digamos assim – iluminada.

Nós acolhemos essa resposta chorando. A comissão que viu comigo o conteúdo dessa carta do cardeal Pedro Parolin nos mandou, ao meu endereço, nos fez chorar de alegria. E já pensando na grande alegria que os romeiros, poderia e deveriam, encontraram na leitura das palavras que vêm do coração do Papa Francisco. Esse Papa que nos compreende porque ele sente na sua própria experiência espiritual a força e a importância da fé dos pobres e não impede que essa fé se manifeste. Não manipula, como sucessor de Pedro, a expressão religiosa numa determinada orientação.

Reconciliar é diferente de reabilitar

Então, quando nós lemos a carta vimos que não se falava de reabilitação e sim em reconciliação. Então, reconciliar é diferente de reabilitar.

Reabilita-se uma pessoa que já morreu? Como podemos dar ao pe. Cícero que já faleceu a mais de 90 anos, né, uma nova configuração canônica, jurídica? Como podemos devolver? Como a Igreja pode devolver o uso de ordens para um morto? Então, não se trataria, canonicamente falando, em reabilitação.

Agente não atinou para esse aspecto quando fizemos o processo. Mas o Papa, que é muito perspicaz e pastoral, sobretudo, entendeu que a questão do pe. Cícero deveria ser vista como uma questão de reconciliação da Igreja com o pe. Cícero e com os romeiros, que são os herdeiros espirituais de toda uma ação do pe. Cícero voltada para valorizar a vida dos últimos.

Um padre exemplar, que morreu pobre, deixando tudo aos pobres

O pe. Cícero manifesta para nós hoje o exemplo de um padre que não tem fronteiras, um padre aberto, um padre que sai ao encontro dos outros, embora ele não tenha nunca saído de Juazeiro; mas um padre aberto para acolher, um padre com cheiro de ovelhas, como fala o Papa Francisco. Um padre, então, sempre solícito para escutar, para dar bons conselhos e para ajudar até financeiramente.

O pe. Cícero é acusado de ter sido rico, mas a riqueza que ele tinha era dada a ele pelos coronéis que brigavam entre si e que o pe .Cícero fazia todo um trabalho de pacificação que eles – quem sabe se por amizade ou reconhecimento – ofereciam ao pe. Cícero bens, terras, para as quais o pe. Cícero enviava os afilhados dele que fugiam da seca, os flagelados.

Então, quando o pe. Cícero morreu, dizem os contemporâneos, pe. Cícero morreu pobre, paupérrimo, ao ponto que tiveram que fazer, os coronéis, uma vaquinha para custear as despesas da funerária: caixão, enterro e tudo. Então, de tão pobre que ele vivia… mas para muitos ainda permanece essa ideia do pe. Cícero rico.

Pe. Cícero Político: fundou a cidade de Juazeiro, da qual foi o primeiro prefeito

O pe. Cícero político. Bom, uma vez que o pe. Cícero foi proibido de exercer o ministério sacerdotal, e o povo continuava indo a ele, e dessa vez um povo exigido, pedindo, suplicando do pe. Cícero uma atenção em favor das famílias, então o pe. Cícero – digamos assim – não sei se cedeu ou assumiu como consequência da sua missão sacerdotal e pastoral, assumiu esse lado político, ou seja, para poder ajudar o povo fundou a cidade de Juazeiro, da qual foi o primeiro prefeito… foi nomeado também para outros cargos públicos, políticos, no Brasil, mas ele nunca chegou a tomar posse… preferiu, então, sempre ficar lá em Juazeiro cuidando do povo.

Então, em vez de reabilitação, reconciliação. Reconcilia-se com uma pessoa que, embora falecida, os valores dela continuam presentes e são eficazes para serem vistos e também assimilados sempre mais pelas gerações do povo.

Uma Igreja que sabe pedir perdão. Ninguém é tão puro de estar livre de qualquer suspeita

Então, reconciliação da Igreja com o pe. Cícero. Esse gesto, que parece tão humano e tão divino. Lembro-me que não é a primeira vez na história que a Igreja passa por um processo de reconciliação e de perdão.

Mais próximos dos nossos dias, dos nossos tempos, o Papa João Paulo II no jubileu do ano 2000, abraçado àquela cruz da basílica de São Pedro, do Vaticano, pediu publicamente perdão, em nome da Igreja, pelos erros cometidos ao longo da história. A Igreja sabe reconhecer também que errou, porque ela é humana, além de ser divina, instituição que vem de Deus, mas Ela é feita por homens, homens que podem errar, homens que, embora com todas as intenções melhores não deixam de transparecer a fraqueza deles como pecadores, das decisões que são tomadas. Ninguém tão puro para estar livre de qualquer suspeita.

E na história do pe. Cícero, infelizmente, assim como na história de todo ser humano tem elementos que contribuíram para a condenação dele.

ZENIT: Dom Fernando, existe algum projeto de publicar toda essa documentação, ou deixa-la à disposição de estudiosos, jornalistas e historiadores?

Dom Fernando Panico: Esse material se encontra à disposição dos estudiosos, dos pesquisadores, no nosso departamento histórico diocesano, na cúria do Crato. Existe, então, o departamento histórico que recolhe todos os documentos relativos à diocese.

Todos os livros, então, que falam da história da diocese, história nas paróquias, etc. E aí estão, agora, os nove volumes, que foram apresentados para o Vaticano. No Vaticano tem uns exemplares, ou melhor, dois exemplares, ou três, não me lembro, de cada volume, conforme nos fora pedido e outros exemplares ficaram aqui mesmo no Crato a disposição da Cúria.

ZENIT: Mas, publicar… há essa ideia?

Dom Fernando: Digamos que, no momento, uma ideia de publicar tudo… ainda não pensamos nisso não. Também para respeitar os tempos, para respeitar o estudo que a Santa Sé faria sobre aquele documento. Para não colocar, então, como costumamos dizer aqui no Brasil “o carro na frente dos bois”. Então, aquela prudência pastoral e também acadêmica, científica, para poder “vender o couro depois de ter matado o animal”.

ZENIT: Então, podemos entender que a Igreja pediu perdão. Mas pediu perdão pelo que, em concreto?

Dom Fernando: Meu irmão, cada um faz a sua leitura. Agora, o Papa, na carta, me recomenda, a mim, bispo da diocese de Crato, para dar ao povo uma justa interpretação daquilo que ele quer e escreve. E essa justa interpretação consiste em que a Igreja reconhece o pe. Cícero pelos frutos dele.

Ou seja, o Papa Francisco chega a desejar, a pedir até, a Deus, para que esta expressão das romarias, como Igreja em saída, Igreja missionária, não seja uma característica só para o Nordeste do Brasil. Mas seja para todo o Brasil e para a Igreja inteira. Então o pe. Cícero botou no coração e na boca e na caneta do Papa Francisco esse desejo de fazer da Igreja toda uma Igreja peregrina, a Igreja missionária, a Igreja que não fica tranquila nos seus lugares assim de status, mas arrisca. A Igreja como hospital, campo de batalha, a Igreja que não tem medo de ficar suja de barro ou de sangue, é a Igreja que mexe com a realidade humana para iluminá-la, para purifica-la e para redimi-la.

Então, o papa Francisco me pede para dar uma justa interpretação dessa carta. E ele disse: nós não entramos em mérito à questão política, à questão de outros aspectos, que são críticos na vida do pe. Cícero. Nós não vamos entrar em mérito nisso. E por isso, não podemos falar, por enquanto de processo de canonização.

Assim fala o papa com muita sabedoria. Isso poderá acontecer, mas não é já já não. É um processo. De modo que eu brinco e falo sério, para mim e para os outros nossos irmãos aqui da diocese, dizendo que certamente não serei eu que vai introduzir o processo de beatificação do pe. Cícero.

O Pe. Cícero saiu do escuro da história. O Romeiro vem ao encontro de Jesus Cristo.

Dêmo-nos por satisfeitos e agraciados pela misericórdia de Deus porque tiramos o pe. Cícero do escuro da história e colocamos ele diante da sua verdade que é reconhecida pelo sucessor de Pedro para que todo o Brasil e sobretudo os milhões de romeiros que todos os anos vêm aqui à Juazeiro atraídos pela memória dele saibam encontrar, não tanto o pe. Cícero, mas Jesus Cristo, porque o pe. Cícero não chamava o povo para visitar ele, mas para se encontrar com a eucaristia, com a confissão, com o sacramento da misericórdia, com Nossa Senhora das Dores, com o coração de Jesus. E o papa Francisco, nessa carta que ele escreveu, diz que é Jesus a origem, o centro e o fim das peregrinações que acontecem por causa do pe. Cícero.

Então, atribuímos a Jesus este movimento de Graça, que é a romaria, e o pe. Cícero naturalmente foi o canal e o instrumento, mas nós amamos o pe. Cícero porque ele nos ajuda a compreender melhor a ser discípulos missionários de Jesus, devotos de Nossa Senhora e fieis à Igreja católica.

ZENIT: E é isso que realmente se vê nos romeiros? Quer dizer, então, que os romeiros que vêm à Juazeiro frequentam os sacramentos, são acolhidos pelos sacerdotes da região, têm todo o apoio pastoral que necessitam?

Dom Fernando: Acontece que nas paróquias de origens, nos municípios e dioceses de origens desses romeiros tem também, além do povo que é devoto do pe. Cícero, tem também padres e bispos que a seu tempo, antes de serem padres e bispos, foram romeiros, então nunca perderam a sensibilidade e a espiritualidade romeira.

Mas, respondendo a sua pergunta: eu não posso afirmar categoricamente que os romeiros, hoje, vêm aqui à Juazeiro mais por causa do pe. Cícero do que por Jesus. Isso foge às minhas apreciações.

Mas, eu faria a mesma pergunta a outro santuário: quem vai venerar em São Giovanni Rotondo São pe. Pio, vai por causa do pe. Pio ou por Jesus? Creio que vão por Jesus por causa do Pe. Pio, mas vão visitar o pe. Pio para que o pe. Pio os ajude a se encontrar com Jesus. A mesma coisa diria com o pe. Cícero e Jesus.

ZENIT: Falando no pe. Pio, lembramos que ele também morreu com cinco processos nas costas…

Dom Fernando: É por isso que existe uma certa afinidade, né? Porém, analógica.

O Pe. Pio também sofreu e sofreu muito. E o grande mérito que a providência de Deus possibilitou-lhe é que o Papa João Paulo II era penitente dele e conhecia muito bem o pe. Pio.

Então, foi o Papa João Paulo II em tão pouco tempo depois que assumiu o pontificado, tirou da gaveta o processo, ou melhor, foi iniciado o processo – não sei bem dizer exatamente – e, em pouco tempo foi beatificado e canonizado; e o pe. Cícero não tem ninguém a favor dele lá na cúria romana. Mas, agora a providência de Deus mandou-nos Francisco que bem compreende a situação e com coragem apostólica, ousadia mesmo, que às vezes incomoda os bem-pensantes – ele toma decisões que são, certamente, expressão de uma luz que o Papa recebe para guiar a Igreja de acordo com o projeto do pai.

ZENIT: Por fim, com relação à notícia da reconciliação da Igreja com o pe. Cícero, ouve-se dizer também que a Igreja está se aproveitando agora da situação, de certa forma instrumentalizando o pe. Cícero, para atrair novamente os católicos para a Ela, por causa da quantidade de fieis que está perdendo para as seitas no Brasil. O que dizer sobre isso?

Dom Fernando: Bom, cada um pensa como quer. Agora, posso garantir, com toda transparência e honestidade de minha parte, que nunca quisemos manipular a memória do pe. Cícero para salvaguardar a perseverança dos romeiros na Igreja católica. Eu diria o contrário. São os próprios romeiros que chegam aqui, em Juazeiro, atribulados pela campanha, pelo proselitismo das seitas que assediam – a palavra é feia mas existe também o assédio religioso – assedia a fé simples dos romeiros para poder agregar os romeiros às seitas.

Foi feito um estudo pela CNBB, anos atrás, um mapa onde estão escritas as migrações religiosas do nosso povo em todo o território nacional. Então, tem regiões aonde é muito clara e evidente a passagem de católicos para os protestantes ou os evangélicos. Mas aqui, dessa nossa região, existem sim alguns “pontos vermelhos”, mas a maioria da região é positiva, ou seja, não têm essa presença.

Eu me pergunto, a que se deve tudo isso? Qual é o porquê dessa situação? E a resposta que me vem de uma maneira talvez ingênua, mas certamente uma resposta que me vem, da contemplação de como Jesus “te louvo, ó Pai, porque essas coisas as escondes aos grandes e as revelastes aos pequenos. Te louvo, ó Pai, porque são os últimos, os humildes, que podem, então, mais te glorificar. Te louvo, ó Pai, porque da boca daqueles que não sabem falar vem para ti o melhor louvor”.