segunda-feira, 2 de novembro de 2015

As doenças do 'Padim'

As doenças do 'Padim'
Seria ele portador de uma doença reumática? Por meio da bio-história, médico cearense estuda os múltiplos aspectos da saúde do religioso
01.11.2015 por Giovanna Sampaio - Editora do Vida - Jornal Diário do Nordeste, Fortaleza, Ceará

A história de vida de Padre Cícero Romão Batista (1844-1934), sobretudo a relacionada à saúde, suscitou um estudo aprofundado sobre a plausibilidade de essa figura mitológica do sertão nordestino ser portadora de espondilite anquilosante, doença inflamatória crônica que afeta as articulações do esqueleto axial (coluna, quadris, joelhos e ombros).

O achado foi apresentado pelo reumatologista cearense Francisco Airton Castro da Rocha, professor e pesquisador da Universidade Federal do Ceará (UFC), durante o Congresso Brasileiro de Reumatologia, realizado em outubro, em Curitiba, com o título "Padre Cícero teria uma doença reumática?"

Questionamentos

O interesse pelo tema, segundo o médico, ocorreu de forma fortuita, após ler a biografia "Padre Cícero: Poder, Fé e Guerra no Sertão" (Companhia das Letras), do escritor cearense Lira Neto. Mais que enxergar a figura do homem religioso por trás do líder popular, o médico se deteve a analisar e questionar a série de doenças e diagnósticos atribuídos ao Padim Cícero, nome pelo qual é reverenciado pelos milhares de romeiros que visitam Juazeiro do Norte.

A curiosidade pelos achados o levou a levou a ler, ao todo, 12 obras sobre a vida do religioso, cujas imagens o retratam sempre com a cabeça inclinada para o lado direito, portando batina, chapéu e seu cajado. Em sua pesquisa, Dr. Airton Rocha também destaca as obras "Milagre de Juazeiro" (Ralph Della Cava), e "Padre Cícero que Conheci" (Amália de Oliveira), essenciais para elucidar a bio-história de seu objeto de estudo.

Para o presidente da Sociedade Cearense de Reumatologia, Dr. José Eyorand Castelo Branco de Andrade, "a entidade vê com bons olhos, pois busca identificar uma doença para a qual não se tinha ainda chamado atenção. São propostas, indícios e tudo leva a crer que o religioso poderia ser portador de espondilite". Destaca que, ainda hoje, muitas pessoas acometidas dessa doença sequer o sabem e, em média, leva-se oito anos para o diagnóstico, após o início dos sintomas.

Histórico dos sintomas

No artigo "Padre Cícero Romão Cícero - Aspectos sobre a saúde do Patriarca de Juazeiro", o reumatologista enumera uma série de indícios, que, aos olhos de um leigo, podem passar despercebidos. A começar pelo fato de, apesar de sua vida longeva, Padre Cícero apresentar o pescoço inclinado, fato particularmente visível quando tinha 44 anos (como mostra uma foto ao lado de sua irmã), e em várias outras posteriores revelando a existência de um desvio cervical lateral.

Outro ponto que chamou atenção foi o histórico de o religioso ter sofrido de dores lombares ao longo da vida, assim como de distúrbios do tubo digestivo (intestinos) e infecções de pele recorrentes (nos últimos anos de vida) e de manter uma posição anteriorizada (para frente) do tronco em relação à região lombar. "Em um vídeo da época, é claro observar que ele tem uma postura rígida e que se desloca em bloco, movendo toda a coluna", diz o reumatologista.

Justificativa do 'achado'

A probabilidade de o quadro indicar que o religioso era portador de espondilite anquilosante, à luz da realidade diagnóstica de hoje, é justificada por Dr. Airton Rocha por uma série de fatores, sendo o genético uma delas.

O componente hereditário - olhos azuis e cabelos louros de Padre Cícero (filho de pai português e mãe índia) - é um elemento a ser considerado, uma vez que a ocorrência de espondilite anquilosante está mais presente em indivíduos brancos caucasóides (do norte europeu).

Em relação às fortes dores na coluna, Dr. Airton Rocha descarta a possibilidade de o padre ter escoliose (como é aventado em suas biografias), uma vez que, ao contrário do imaginário popular, a escoliose não é uma doença que provoca dor e raramente acomete a coluna cervical. Sobre Padre Cícero é relatado que ele sofria dores frequentes, em plena maturidade, que chegaram a prostrá-lo e indicavam não depender da realização de algum tipo de esforço físico. Isso sugere ter sido tratado de dor de caráter inflamatório, como é próprio desse grupo de doenças inflamatórias da coluna (como as espondiloartrites).

Patologia de base

O reumatologista cita outra passagem do histórico de saúde do religioso na qual, aos 60 anos, ele ter sido diagnosticado por seu médico, Dr. Antonio Mariz, como portador de gota. "Possivelmente, seria consequência da doença de base (espondilite), uma vez que Padre Cícero tinha dieta frugal e fazia jejuns prolongados, abstêmio de bebida alcoólica, um perfil muito diferente de quem tem gota (artrite associada à deposição de cristais de ácido úrico). Devido aos problemas intestinais, o religioso, por volta dos 70 anos - teve a dieta líquida restrita a chás e água de coco", relata o pesquisador.

Esse recorte de evidência sugere que problemas digestivos, que estariam relacionados às espondiloartrites, lhe levaram a pensar que a "água-do-Juazeiro", por não estar adequadamente tratada, lhe prejudicasse. Na verdade, poderia se tratar de distúrbios intestinais que acometem pessoas com espondiloartrites, como a espondilite anquilosante. Sugere que o uso do cajado, além de sua função pastoral, tenha sido a forma encontrada pelo religioso para facilitar o apoio e permitir-lhe grandes marchas e trabalho incessante, para compensar a fragilidade de sua postura.

Além de submeter seus achados à crítica de seus pares, junto à Sociedade Brasileira de Reumatologia, Dr. Airton Rocha finaliza artigo que será publicado, em breve, em revista científica da área de reumatologia.

Outro olhar

Para examinar a legitimidade desse achado, o reumatologista José Tupinambá Sousa Vasconcelos realizou análise sob o título "Padre Cícero teria reumatismo". Segundo ele, a pesquisa faz parte do campo da bio-história, que envolve diferentes áreas, desde a médica, passando pela genética, antropologia, química, psicologia e a própria história. "Não é uma questão de diagnóstico".

"É possível admitir a plausibilidade nosológica para a fenotipia de espondiloartrite", afirma o reumatologista, para quem considera muito difícil o fato de o religioso - a quem são atribuídos vários milagres - ter sido acometido de escoliose. Outras possibilidades diagnósticas foram excluídas pelo Dr. Tupinambá, incluindo poliomielite, osteoartrite e osteoporose, além da gota, embora considere "ser razoável admitir que Padre Cícero teria sido portador de uma espondiloartrite".


 

segunda-feira, 28 de setembro de 2015

CADÊ OSSOS DA BEATA? José Pereira Gondim


Padre Cícero e Beata  Maria de Araujo, no museu-Juazeiro
A Beata Maria de Araújo, conforme registro Oficial, foi sepultada num túmulo construído pelo Padre Cícero, no interior da nave e no lado direito da Capela de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, em Juazeiro do Norte. Mesmo condenada a um ostracismo palpável, seu jazigo não estava situado na sacristia, longe dos olhares de quem adentrava a capela, mas, bem no centro da mesma. Ademais, a Beata fora protagonista central do suposto milagre, que praticamente deu vida ao Juazeiro, bem como foi ela o fator desencadeante das romarias que projetaram a acanhada Vila do Joaseiro tornando-a, uma das cidades mais importantes do Nordeste e reconhecida até no exterior, como um local de trabalho, oração e fé. Maria de Araújo fez tremer um bispado e lançou sombras sobre a Igreja, uma Entidade com dezessete séculos de trajetória. A possibilidade de um cisma no catolicismo nordestino, somente não foi pressentido pelo Padre Cícero, em face de sua bondade e o grande amor por sua Igreja, uma Entidade que o maltratou de forma maiúscula, mas, que anteviu, nessa época nevrálgica, que essa divisão não seria difícil, pois, para onde o Padim se inclinasse, seus romeiros o acompanhariam. Portanto, a Beata Maria de Araújo, mesmo morta e aparentemente esquecida poderia ter seu culto despertado a qualquer momento, principalmente por seu túmulo está colocado numa posição estratégica, bem visível e diariamente lembrado pelos romeiros que visitavam a capela. Quem sabe, um belo dia, aquela primeira romaria de 07 de Julho de 1889, muito bem poderia ser reeditada, e, a partir daí transformar-se em devoção? Destarte, Maria de Araújo, mesmo morta
continuava sendo um estorvo no caminho da Igreja, mormente por seu túmulo está colocado numa situação de realce, e, com muito mais projeção do que o próprio altar de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. A capela fora concluída em 1908, todavia, em função das perseguições ao Padre Cícero, ainda não recebera a devida bênção religiosa, episcopal, e, agora, com a presença dos restos mortais da Beata Maria de Araújo, no seu interior, essa bendição devia está totalmente fora dos planos da Igreja. Abençoar a capela com ela lá dentro, impossível (?) Pois foi justamente por isso, que no dia 22 de Outubro de 1930, seus restos mortais foram exumados de forma criminosa, clandestina, e seu túmulo foi destruído sob alegativas tolas de rebaixamento de piso, enquanto seus ossos (os 206 ossos que compõem o esqueleto humano) foram irresponsavelmente e truculentamente jogados numa vala qualquer, ou incinerados, assim como o foram os"paninhos" do pretenso milagre. Nessas alturas dos fatos soa até ridículo, para esse Autor procurar-se em nível de bispado, da diocese do Crato, quem ordenou esse crime de vilipêndio, a premeditada ocultação dos ossos da infortunada Beata Maria de Araújo. Obviamente houve um responsável por esse ato de tamanha intolerância e indisfarçável arrogância, no entanto, o vigário do Juazeiro do Norte, monsenhor José Alves de Lima foi apenas um cumpridor de ordens, ou como se diz no vulgo, o "testa de ferro" de alguém, ou algo mais poderoso. É notório, que a Beata Maria de Araújo, apesar de mergulhada no ostracismo era alguém conhecida no Vaticano. Ela foi a mulher que abalou essa Entidade poderosíssima e seu nome foi citado em expedientes e decretos da Instituição, como foi o caso do fatídico documento assinado pelo cardeal Mônaco, em 04 de Abril de 1894. No que tange ao bispado do Ceará, na época de dom Joaquim, o nome de Maria de Araújo, embora de forma sofrida e ligado a perseguições e punições, sem nenhum exagero foi uma constante. Nesses termos, mandante do crime foi a conveniência, foi a necessidade de se expulsar de dentro da capela os restos mortais de alguém, que apesar do: "viva a Beata Maria de Araújo (viva!); viva o Padre Cícero (viva!)"que lhe são dados hoje, nas procissões e por ocasião das celebrações das missas do dia vinte de cada mês, em lembrança da morte do Padim foi alguém que preocupou, e muito, a Igreja, não só no passado, mas, também agora. É bom deixar claro que o vigário monsenhor Lima cumpriu ordens, enquanto o Vaticano necessitava derriscar a última lembrança da Beata, que continuava bem à vista, e, "seguro morreu de velho". Independente do encontro de algum documento ou alfarrábio puído, que aponte um culpado menor, não se consegue calar-se a interrogação de alguns cidadãos livres, num País laico e democrático:1) Por que a Igreja não lhe devolve os ossos?; 2) Por que ela não pode ter um túmulo, onde os parentes, amigos e admiradores possam reverenciá-la?; 3) Se a Igreja prega amor e perdão, por que isso não reverbera nos castigos impostos a Beata, ao Padim, ou esse amor e perdão são vivenciados na casa e na vida dos outros? Segundo o velho professor de latim desse Autor evocando o filósofo romano Sêneca: "é torpe dizer-se uma coisa e fazer-se outra"! Atualmente, Maria de Araújo recebe vivas efusivos e a sua caridade e pureza são reconhecidos dentro e fora da Igreja. Já é tempo de devolver-lhe os ossos, a fim de que eles descansem em local público e conhecido. Basta de tanto sofrimento! 
Nota: Esse texto faz parte de um livro deste Autor, em acabamento - Padre Cícero: Quando a Igreja vai lhe pedir perdão? 

terça-feira, 12 de maio de 2015

Afinal, Padre Cícero foi ou não foi excomungado? Daniel Walker

Padre Cícero
Existe uma polêmica muito grande quanto a saber se Padre Cícero foi ou não foi excomungado pela Igreja Católica como decorrência das investigações dos chamados Milagres da Hóstia, ocorridos no povoado de Juazeiro a partir de 1º de março de 1889. Muitos escritores chegaram a dizer em seus livros publicados que ele morreu excomungado; outros disseram que ele não foi e outros que ele foi, mas a pena foi revogada antes de ele morrer. Quem está com a razão? Este texto foi escrito no intuito de tentar dirimir as dúvidas e elucidar a verdade, tendo como base documentos oficiais emitidos pelo Santo Ofício (hoje denominado de Congregação para Doutrina da Fé) e informações de fontes insuspeitas. Para melhor compreensão vamos detalhar os fatos seguindo uma ordem cronológica e sempre que possível será feito um pequeno comentário para maior clareza da informação. Antes de falarmos sobre a excomunhão propriamente dita fazemos uma retrospectiva da evolução das penas aplicadas ao Padre Cícero, as quais tiveram início  com uma repreensão por escrito feita pelo bispo Dom Joaquim. 

- 4 de novembro de 1889. Inconformado com as notícias veiculadas na imprensa sobre os milagres  o Bispo Dom Joaquim envia carta a Padre Cícero na qual o proíbe expressamente de fazer qualquer manifestação pública sobre o assunto.
Comentário: depois dessa carta o bispo mandou outra e como não ficou satisfeito com o comportamento do Padre Cícero no atendimento as suas determinações resolveu ser mais duro, aplicando penas mais severas. 

- 6 de agosto de 1892. Através de Portaria o bispo D. Joaquim suspende o Padre Cícero das faculdades de confessar, pregar e administrar sacramentos. 
Comentário: Esta foi a primeira pena grave imposta oficialmente a ele como desdobramento das investigações dos fenômenos ocorridos no povoado de Juazeiro a partir de 1º de março 1889, denominados popularmente de Milagres da Hóstia.

- 13 de abril de 1896. O bispo dom Joaquim aumenta a punição ao Padre Cícero e o proíbe de celebrar Missa. 
Papa Leão XIII
Comentário: Em 26 de junho do mesmo ano Padre Cícero envia sua apelação ao Papa Leão XIII e pede que seja enviada uma comissão a Juazeiro para averiguar os fatos relativos ao Milagre da Hóstia. Tudo em vão, o Santo Ofício não mandou a Comissão e a proibição de celebrar Missa permanece. 

- 10 de fevereiro de 1897. O Santo Ofício  emite um novo Decreto, agora proibindo a permanência de Padre Cícero em Juazeiro, sob pena de excomunhão. 
Comentário: as proibições aumentam tendo em vista as péssimas informações chegadas a Roma sobre o Padre Cícero. O bispo Dom Joaquim estava tão indignado com o comportamento do Padre Cícero que nem sequer sabia mais distinguir entre verdade e boatos e colocava no papel e enviava a Roma qualquer informação recebida dos padres a seu serviço (principalmente Padre Alexandrino de Alencar) que espionavam a vida do Padre
Pe.Alexandrino
Cícero. Temeroso de incorrer na pena de excomunhão,  Padre Cícero resolve sair de Juazeiro e vai para Salgueiro. Isto foi em 29 de junho de 1897. Em  25 de fevereiro de 1898 Padre Cícero chega a Roma para se entender com as autoridades religiosas na esperança de elucidar tudo sobre a Questão Religiosa em que se  envolveu e, principalmente, ser reabilitado.

- 22 de junho de 1898. Após cinco interrogatórios os cardeais do Santo Ofício decidem absolver o Padre Cícero das censuras até então impostas, mas ele permanece com a proibição de pregar, confessar e dirigir as almas e é aconselhando a procurar outra diocese. 
Albergue da Igreja de São Carlos 
Comentário: Um fato interessante aconteceu nesse momento. Como o Padre Cícero não foi encontrado no endereço em que estava hospedado, os cardeais  determinaram que ele deveria permanecer suspenso a divinis até se apresentar, de novo, ao Santo Ofício. A expressão latina suspensão a divinis se refere à suspensão de um eclesiástico de suas atividades ou ofícios religiosos. Sobre o suposto desaparecimento do Padre Cícero uma explicação plausível é dada por Padre Antenor Andrade no seu livro  Padre Cícero: o calvário de um profeta dos sertões, publicado recentemente. Ocorreu o seguinte: ao chegar a Roma Padre Cícero ficou provisoriamente hospedado num hotel. Mas como suas finanças estavam se esgotando ele pediu às autoridades eclesiásticas que lhe arranjassem outro local, de preferência pertencente à Igreja, onde ficaria isento de despesa, e a assim foi atendido. Passou a residir no Colégio São Carlos, ao lado da imponente Igreja de São Carlos na Vila Del Corso, bem no Centro de Roma. Acontece que Padre Machado, encarregado de notificar ao Padre Cícero sobre a decisão do Santo Ofício não foi informado que ele havia mudado de endereço e não o encontrando no endereço anterior, informou às autoridades que não encontrara o destinatário. Daí a  confusão gerada. Mas depois ficou tudo esclarecido e Padre Cícero foi finalmente notificado da sua absolvição, quando compareceu ao Santo Ofício em 1º de setembro de 1898.  

- 5 de setembro de 1898. Após vários requerimentos enviados ao Santo Ofício para regularizar sua situação ele consegue autorização e com muita alegria celebra Missa na Capela de São Carlos. E os cardeais foram mais benevolentes ainda, pois lhe concederam também permissão para celebrar durante a viagem de volta ao Brasil.

- 15 de novembro de 1898. Padre Cícero se apresenta a Dom Joaquim em Fortaleza e lhe informa que fora absolvido em Roma. Mas o bispo, certamente insatisfeito com a decisão do Santo Ofício, foi implicante mais uma vez e não permite que ele celebre em Juazeiro. 
Comentário: diante dessa atitude do bispo fica claro que ele não estava nada satisfeito com o desdobramento favorável da viagem do Padre Cícero a Roma. E como Padre Cícero continuou residindo em Juazeiro, as proibições permaneceram. 

- 12 de julho de 1916. O Santo Ofício declara o Padre Cícero incurso na excomunhão latae sententiate. 
D. José Anversa
Comentário: Este é um dos vários tipos de excomunhão adotados pela Igreja Católica e é aplicado quando o fiel incorre no momento que comete a falta previamente condenada pela religião. 
Assim, está bastante claro: de fato, foi lavrado um documento de excomunhão do Padre Cícero pelo Santo Ofício. Em 27 de julho de 1916 o cardeal Merry Del Val comunica o fato oficialmente ao Núncio Apostólico, Dom José Anversa. Eis o decreto na íntegra:
“Ilmo. e Rmo. Senhor,
Por informações desta Nunciatura Apostólica às Sagradas Congregações Consistorial e dos Negócios Eclesiásticos Extraordinários resulta evidente que o famigerado Sacerdote Cícero Romão Baptista de Joaseiro no Estado do Ceará, diocese de Fortaleza, nunca obedeceu, como devia aos repetidos Decretos do S. Ofício a seu respeito; que a sua obstinada permanência em Joaseiro é de gravíssimo dano para as almas; e que gravíssimas consequências se havia de deplorar se o mesmo, que já é bastante avançado nos anos, viesse a morrer naquele lugar.
Cadeal Merry
Tendo sido tudo isto referido na Congregação Feria IV, 21 de junho pp., os Emos. Senhores Cardeais, Inquisidores Gerais, meus Colegas, ordenaram que os lugares da mencionada Diocese nos quais forem necessários e no modo que V.S. julgar mais oportuno seja emanada uma pública declaração com a qual resumidos os Decretos de 4 de abril de 1894, com os quais se declaravam falsos os pretensos milagres de Joaseiro e se condenava a protagonista da indigna comédia e os seus fautores, entre os quais especialmente o Cícero; o outro dia 10 de fevereiro de 1897, com o qual se impunha ao Cícero afastar-se de Joaseiro sub pena excomunicationis latae sententiae Romano Pontifici reservatae; e finalmente o de 17 de agosto de 1898, com o qual se confirmaram as precedentes disposições e se acrescentaram outras; faça-se claramente entender aos fieis que a S. Sé e confirmando tudo que foi ate agora estabelecido reprova decididamente e condena a conduta do Cícero, declara-o incorrido na excomunhão reservada ao Sumo Pontífice, e exorta calorosamente todos os fieis a não se deixar enganar pelas suas falácias e tergiversações.
Neste interim, tenho o cuidado e participar-lhe que queira providenciar a sua plena e pronta execução e lhe desejo todo o bem de Deus. De V. S.Ilma. e Rma. Devmo. Servidor verdadeiro R. Card. Merry Del Val”.

Dom Quintino
D. Quintino, bispo do Crato, só tomou conhecimento desse documento no dia 14 de abril de 1917, portanto nove meses depois da sua publicação. E só resolveu comunicar por carta ao Padre Cícero no dia 29 de abril de 1920, portanto três anos depois. E aconteceu um fato curioso: a carta foi escrita e enviada, mas Padre Cícero não a recebeu por decisão de Dr. Floro Bartholomeu da Costa, cujo motivo depois explicaremos. Antes vamos mostrar o conteúdo da carta de Dom Quintino:
“Crato 29 de abril de 1920
Revmo. Sr. Pe. Cícero Romão Baptista
Não tendo a Suprema Congregação do Santo Oficio, até hoje reformado a sua venerada decisão de 21 de junho de 1916, na qual, considerando que o sacerdote Cicero Romão Baptista desta diocese nunca obedeceu, como devia, aos repetidos Decretos do Santo Ofício a seu respeito; que a sua obstinada permanência em Joazeiro e de grandíssimo dano as almas e que gravíssimas consequências se haveriam de deplorar se o mesmo viesse a morrer naquele lugar... ordenou que nos lugares da mencionada Diocese, nos quais se julgar necessário e no modo o mais eficaz, seja emanada uma pública declaração, com a qual, retomados os Decretos de 4 de abril de 1894, com o qual se declaravam falsos os pretensos milagres de Joazeiro e se condenava a protagonista da indigna comédia e os seus fautores, entre os quais especialmente o Cícero; o outro de 19 de fevereiro de 1897, com o qual se impunha ao Cícero afastar-se de Joazeiro, sub pena excomunicationis latae sententiae Romano Pontificireserva qual se confirmaram as precedentes disposições e se acrescentar outras; se faça claramente entender aos fieis que a S. Sé mantém firme tudo o que foi até agora estabelecido, decididamente reprova e condena a conduta do Cícero, declara-o incurso na excomunli reservada ao Sumo Pontifice, e exorta calorosamente todos os fieis a não deixar-se levar em engano pelas suas falácias e tergiversações (Carta do Núncio Ap., de 14 de abril de 1917); não sem pesar no antes de tudo, fazemos sentir a V. Revma. que a provisão que lhe concedemos para celebrar nesta Diocese, já por se ter esgotado seu prazo, desde 31 de dezembro de 1917, já sobretudo pelo fato da supracitada decisão, que agora lhe intimamos, por escrito, está sem nenhum vigor e não poderá ser renovada enquanto não for para isto autorizado por aquele Sagrado Tribunal.
Deus guarde e ilumine V. Revma.
Ass. + Quintino, Bispo Diocesano”. 

Dr. Floro
Padre Cícero não chegou a receber essa carta porque Dr. Floro foi quem a viu primeiro e diante do conteúdo exposto achou por bem não lhe entregar, pois achava que em face da avançada idade Padre Cícero não estava em condições de saúde e psicológicas para suportar tamanho baque. E foi isso mesmo que Dr. Floro informou ao bispo, conseguindo convencê-lo a não dar conhecimento da gravíssima pena de excomunhão a que padre Cícero incorreu. 
Dom Quintino tinha, então, um documento provando que Padre Cícero estava excomungado, mas mesmo assim deixou que ele continuasse celebrando missa fora de Juazeiro. Ele celebrava no sítio Saquinho, município do Crato. 

No dia 1º de janeiro de 1917, estando excomungado, mas sem saber, Padre Cícero recebe autorização do bispo para celebrar Missa na capela de Nossa Senhora das Dores, onde deixara de celebrar desde o dia 6 de agosto de 1892. 

Tudo corria mais ou menos normal entre Padre Cícero e o bispo Dom Quintino. Mas no dia 2 de junho de 1921 Padre Cícero lhe escreve uma carta pedindo autorização para ser padrinho de batismo de uma criança, filha legítima do Sr. Antônio Luiz de Assis Chitafina e Lucila Tenório de Assis, residentes em Juazeiro. Para sua surpresa, Padre Cícero recebeu a seguinte resposta:

“Visto como o Revdmo. suplicante não está cumprindo exatamente todas as cláusulas das declarações que em Dezembro de 1917 depositou em nossas mãos, depois de serem lidas em público; e não só está fomentando a venda e divulgação das medalhas proibidas (quais são as que têm a sua efigie), mas frequentando o estabelecimento do vendedor e benzendo-as, como ainda a certa mulher que deixou de confessar-se para casar por ter declarado que acreditava "Nos milagres do sangue precioso do Juazeiro" aconselhou-lhe que fosse para Cajazeiras, da Paraíba, onde há trabalhos públicos, e depois de algum tempo de estadia ali, efetuasse, lá mesmo, seu casamento; não podemos dar licença ao mesmo suplicante para apadrinhar crianças e nem lhe conceder uso de ordens nesta diocese.
Crato, 3 de junho de 1921
Ass. Quintino, bispo diocesano”.
Comentário: Segundo escreveu Amália Xavier de Oliveira em seu livro O Padre Cícero que eu conheci, “este despacho só chegou ao conhecimento do Padre Cícero no dia 4 de junho, quando ele já havia celebrado, sem o saber, sua última Missa”. 

Papa Bento XV
Apesar de muita gente ter o bispo dom Quintino como algoz e inimigo do Padre Cícero, ele, na verdade foi muito benevolente para com o Padre Cícero. Chegou a pedir a reabilitação do padre, conforme esclarece a carta transcrita a baixo que ele enviou (quando estava no Rio de Janeiro) ao Papa Bento XV
“Beatíssimo Padre,
O Bispo do Crato, tendo recebido pelo Núncio Apostólico, em maio de 1917, o mandado de tornar pública em sua Diocese a sentença pela qual a Sé Apostólica declara que o sacerdote Cícero Romão Baptista, na mesma Diocese bem conhecido, incorreu na pena que lhe foi cominada de excomunhão latae sententiae, reservada ao Romano Pontifice, em virtude de ter negligenciado as determinações a ele impostas pela Sagrada Congregação do Santo Ofício nos três Decretos dos dias 4 de abril de 1894, 10 de fevereiro de 1897 e 17 de agosto de 1899, e por ter obstinadamente permanecido na cidade de Joazeiro, que pelo Decreto de 10 de fevereiro de 1897 deveria deixar, vem, prostrado aos pés de Vossa Santidade, humildemente implorar que lhe seja permitido expor o seguinte: O mencionado sacerdote Cícero Romão Baptista sofre há tempo de lesão cardíaca, de acordo com os atestados médicos, confirmados pelos sintomas que nele se manifestam; donde surge o grande perigo de que ele tenha um desenlace fatal, com a publicação da referida sentença. Em tais circunstâncias, o suplicante decidiu submeter ao sapientíssimo juízo da Sagrada Congregação do Santo Ofício, em cópia autentica, as declarações claras e categóricas que o mesmo Pe. Cicero escreveu, de livre e espontânea vontade, no mês de dezembro de 1917, e que foram lidas em sua presença a numerosa multidão de fieis, por ocasião de uma santa missão que, então, se realizava com grande fruto na referida cidade de Joazeiro. A partir disto, considerando,
1°) Que as condições religiosas da recente paroquia, depois  da santa missão, ter melhorado sensivelmente, contando mais de mil comunhões mensalmente;
2°) Que a permanência do Pe. Cícero nessa cidade, com a faculdade de  celebrar em qualquer outro lugar da Diocese, e bem assim o fato de ele ter se confessado sempre, e até feito duas vezes os exercícios espirituais do Clero, indicam que a autoridade diocesana tenha admitido a legitimidade dos motivos dessa permanência e tenha tolerado; 
3°) Que o perigo de gravíssimas e deploráveis consequências, que se temia pela sua morte naquele lugar, vem sendo pouco a pouco, removido pela  sensível diminuição de seu prestigio nos assuntos religiosos; e mesmo se assim não fosse, não haveria de se esperar o desejado efeito, nem pela sua ida para outro lugar nem pela declaração de sua excomunhão; 
4a) Que, enfim, já alcançou a avançada idade de setenta e cinco anos e tem  precário estado de saúde.
O mesmo suplicante pede permissão para manifestar o seu parecer de que não seja executada a publicação do mandado, e exprime seus desejos de que, pelo bem da paz, seja o Pe. Cicero Romão Baptista absolvido das censuras em que incorreu e lhe seja concedida a faculdade de celebrar a Santa Missa também em Juazeiro, suposta a cláusula especial de observar fielmente as declarações por ele emitidas.
Rio de Janeiro, 9 de novembro do ano do Senhor 1920 +Quintino, Bispo Diocesano do Crato.”

No dia 23 de fevereiro de 1921, o Santo Ofício analisou a solicitação de Dom Quintino ao Papa, que pede a absolvição das censuras e a permissão de celebrar, e resolveu atender apenas à primeira parte (absolvição das censuras, aí incluindo a excomunhão), mas não concedeu o direito de celebrar, podendo o Padre Cícero receber os sacramentos como simples leigo. Também é feita mais uma vez a recomendação de ele deixar Juazeiro. 

- 3 de junho de 1926. Como Padre Cícero adotou a opção de permanecer em Juazeiro Dom Quintino acatando determinação do Santo Ofício o suspende novamente, retirando-lhe  o uso de ordens. Foi esta a última e definitiva punição.
Comentário: foi nessa situação – suspenso de ordens e não excomungado -  que Padre Cícero encerrou seus últimos dias de vida, em 20 de julho de 1934.  

Bento XVI
CONCLUSÃO: Pela explanação exposta neste trabalho fica evidente que Padre Cícero foi realmente excomungado, mas não morreu excomungado, pois a pena  foi revogada pelo Papa Bento XV, permanecendo as outras censuras especialmente  a proibição de celebrar. Muitos pedidos implorando a sua reabilitação foram enviados a Roma, todos em vão.  O último, protocolado oficialmente e pessoalmente pelo atual bispo da Diocese do Crato, Dom Fernando Panico, na Congregação para Doutrina da Fé, no Vaticano, ocorreu no dia  31 de maio de 2006, mas até agora está sem resposta. A petição acompanhada de relatório e farta documentação, inclusive abaixo-assinado com mais de cem mil assinaturas de devotos do Padre Cícero e 254 de bispos do Brasil, com aval da CNBB,  foi entregue  ao Cardeal  Josef William Levada, Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. O Bispo acompanhado de alguns membros da
Cardeal Josef Levada
Comitiva ainda conseguiu falar com o Papa Bento XVI numa deferência toda especial de Sua Santidade. Naquele momento histórico chamou a atenção dos membros o olhar de Sua Santidade à foto do Padre Cícero estampada nas camisas vestidas por vários membros da Comissão que foi a Roma. Irmã Annnette Dumoulin, uma das presentes, contou o seguinte: “Ana Teresa e eu, estávamos de cadeira de roda. O Papa cumprimentou todos os cadeirantes. E quando chegou para mim, falei em francês, mostrando a foto do Padre Cicero na minha camisa: "Santo Padre, em nome de milhões de Brasileiros, especialmente nordestinos, estamos aqui pedindo a reabilitação do Padre Cícero." E o Papa me respondeu em francês, olhando o Padre Cícero na minha camisa: "Sim, o Bispo acabou de me falar sobre ele." Então o papa viu Padre Cicero três vezes! Nas camisas de Ana Teresa, de Maria do Carmo e da minha.”
Pelo exposto fica também evidente que se Padre Cícero saísse de Juazeiro e nunca mais falasse nos Milagres da Hóstia ele continuaria como padre católico. Aí é o caso de perguntar: se ele realmente saísse de Juazeiro e nunca mais falasse nos Milagres ele seria o mesmo Padre Cícero? E sua criação – Juazeiro - o que seria? Teria crescido ou ficaria para sempre como um simples povoado dependente do Crato? Impossível imaginar. Mas, raciocinando dentro do que realmente ocorreu, ousamos afirmar: pagando o alto preço de ter suas ordens suspensas porque preferiu permanecer em Juazeiro, o Padre Cícero certamente morreu consciente de ter feito a coisa certa e, com isso, seu filho - o Juazeiro - só teve a lucrar, pois só chegou aonde chegou (ser uma grande cidade e centro de romaria) por causa dele. E mais, não resta dúvida, a decisão de ficar em Juazeiro, mesmo sacrificando sua carreira eclesiástica, provocou o surgimento de um santo popular e a fundação de uma Nação Romeira. São dois fenômenos que a Igreja jamais destruirá porque  ambos foram resultados de ação popular. 
Irmãs Annette e Ana Tereza e Maria do Carmo Pagan Forti quando eram cumprimentadas pelo Papa Bento XVI

FONTES
Della Cava, Ralph. Milagre em Joaseiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
Maia, Helvídio Martins. Pretensos milagres em Juazeiro. Petrópolis, 1974
Neri, Feitosa (Pe). Padre Cícero e Juazeiro. Textos reunidos. Fortaleza, Imeph, 2011
Neto, Lira.  Padre Cícero, poder, fé e guerra no sertão. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
Oliveira, Amália Xavier de. O padre Cícero que eu conheci. Rio de Janeiro, 1966.
Silva, Antenor de Andrade Silva. Padre Cícero: o calvário de um profeta dos sertões. Recife, 2015. 
_____. Cartas do Padre Cícero. Salvador: Escolas Profissionais Salesianas, 1982.
_____. Padre Cícero mais documentos para sua história. Salvador: Escolas Profissionais Salesianas, 1989.