Um mar de gente espalhada por toda parte. Em sua maioria, pessoas humildes, provenientes de vilarejos e sítios perdidos em terras distantes. No semblante de cada um, convicção e serenidade. Mesmo os que ali estão premidos pelos arrochos da vida e pela miséria não deixam transparecer suas dores, antes, semblantes de alegria e serenidade. Alguém que não tenha conhecimento do fenômeno religioso que um dia aconteceu de acontecer aos pés daquela serra imensa e lendária não teria a menor ideia da movimentação pacificiosa que ali se desenrola aos olhos de todos. Para uma aglomeração tão grande de pessoas, a única razão é a fé, a busca do transcendental. Acaso a motivação fosse outra, bastaria um barbudo qualquer metido a revolucionário dar um grito e pronto! A confusão seria grande naquele mar imenso de necessidades humanas. Mas o propósito de cada um ali, como já disse, é o exercício da fé, o desejo de agradecer, a crença num Deus que atende àqueles que suplicam e imploram a proteção divina. Basicamente, pedem chuva, pão, saúde, cura para os males que afligem o corpo e dilaceram a alma.
Gente de todas as idades num exercício de amorosidade em duas dimensões: Deus e o próximo. Em cada esquina, penitência, orações e louvores. O Deus daquela gente humilde tem forma humana. Não conseguem crer num ser abstrato ou num conjunto de energias vitais responsável pela criação de múltiplos cosmos e de essências imutáveis. Seria irreal, distante. Melhor um Deus forte, valente, guerreiro, à moda do Antigo Testamento, sempre ao lado de seu povo na hora das necessidades que são tantas e desconhecidas dos governantes. Suas carências exigem respostas concretas, soluções radicais e imediatas. Não dar mesmo é para esperar. Não podem! Para muitos, esperar significaria morrer. Morte é tragédia, fim, fracasso existencial. Por isso, tanto sacrifício para obter graças e favores no plano material.
Muitos ali estão em busca de perdão por deslizes, fraquezas humanas ou por terem trilhado os caminhos da deslei. Não importa. O que vale mesmo é a presença, o testemunho e a fé num homem de palavra forte que ainda hoje consegue arrebanhar multidões e tangê-las para a banda de Jesus.
Verdade: quem passa por aquele reduto tido como sagrado nunca mais é o mesmo. Alguma coisa, por menor que seja, melhora em suas vidas depois de erguerem seus chapéus de palha para a bênção e de vivenciarem o exercício da caridade e do perdão. Humildade, arrependimento, penitências e ofertas para construir aquele reduto dedicado à benemerência são demonstrações concretas que atraem o olhar divino.
Melhor que um santo ausente ou distante é um pecador que incorpora as dores e sofrimentos do povo e delas participa, tentando minorá-las. Ele era assim: de braços abertos, recebia chagados de lepra, aleijados, feridentos, cegos, loucos e todo tipo de criaturas que fediam e davam repugnância. Para ele, a alma não tem cheiro. Nem bom nem ruim. Com esta visão, recebia criminosos, cangaceiros, prostitutas, viciados, pessoas vítimas de injustiça, perseguição política, descriminação social ou qualquer outro tipo de degradação humana. Estava convicto de que o amor e a solidariedade é que dão significado à vida. Conselhos sábios, soluções práticas. Já naquele tempo, recomendava cuidados com o meio-ambiente.
Não elogiava nem condenava ninguém. Apenas escutava e compreendia. A solidariedade era uma nova forma de representar o sagrado, a única capaz de revolucionar a existência humana em qualquer época.
Com a ação daquele homem, surgiu um humanismo preocupado em fortalecer o espaço público, coletivo e político em benefício de todos, mas especialmente daqueles que nada possuem. Incentivador de artes, ofícios e saberes, uma porta aberta para o trabalho e a profissionalização. Deu exemplos de como sair de si, de como superar o egocentrismo individualista e a opulência da instituição a que pertencia. Sua ação solidária se voltou para as pessoas, não para as abstrações. Dedicou seu tempo aos seres humanos de carne e osso, sacralizados pelo amor. Neste sentido, refundou um novo tempo que sequer foi percebido. Pregou uma transformação que atinge todos os setores da vida humana, uma mudança de perspectiva no plano coletivo. O sagrado não estava no cosmo, mas no outro.
Não pretendo aqui embelezar os fatos, mas reexaminá-los sem os ranços de ideologias, preconceitos ou dogmas.
Justiça!
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O AUTOR. Pedro Nunes, residente em Recife, é advogado e escritor, autor de vários livros entre os quais Guerreiro togado, que tem um capítulo sobre o Padre Cícero.