Os escritores sempre apontaram o foco para observação do Padre Cícero em cima de três vertentes básicas da sua história: a) o relacionamento dele com os romeiros; b) seu comportamento na questão religiosa decorrente do milagre da hóstia e c) a sua incursão pelo caminho tortuoso da política partidária.
No começo, em qualquer um desses aspectos, salvo algumas exceções, sua atuação foi sempre analisada obedecendo a uma dicotomia de juízos diametralmente opostos: de um lado, sendo atacado pelo radicalismo exacerbado dos que não lhe reconheciam nenhum valor; de outro, sendo exaltado com exagero pelos que nele só encontravam virtudes.
Por isso, a maior parte da produção literária resultante desses estudos iniciais pouco ajudou para definir a verdadeira figura histórica do Padre Cícero. Na verdade, contribuiu para aumentar o número de admiradores e de detratores, e também para compor um acervo bibliográfico que apesar de sofrer algumas restrições ainda hoje serve como fonte de consulta.
O certo é que, sem acesso à documentação oficial (abundante, porém secreta, e por isso inacessível à maioria dos pesquisadores) muitos escritores e memorialistas inventaram fatos, dando margem à fantasia, e deturparam dados, criando motivo para interpretações duvidosas. Com efeito, isso tornou o Padre Cícero uma figura mitológica e ao mesmo tempo uma pessoa ou amada ou odiada.
Alguns trabalhos tidos como difamadores, entre os quais o de Otacílio Anselmo (Padre Cícero, mito e realidade) mostram o Padre Cícero como responsável pelo estado de atraso e penúria em que vivem os sertanejos. No tocante à questão do milagre, o autor armou um esquema tão bem engendrado que é capaz de induzir o leitor a concluir que Padre Cícero participou ativamente de uma farsa, (é assim que ele considera o milagre da hóstia) arquitetada pelo professor José Marrocos e encenada pela beata Maria de Araújo com o beneplácito do sacerdote. E sobre sua atuação política, os indícios apresentados na obra estão montados de forma a permitir ao leitor a aceitação da tese de que Padre Cícero ingressou na política, movido principalmente pela ambição do poder.
Por outro lado, trabalhos explicitamente apologéticos, como o de Reis Vidal (Padre Cícero, sua vida e sua obra), transformaram Padre Cícero num ser próximo ao divino, um profeta, fato este amplamente disseminado pela literatura de cordel.
Usando a coerência e a racionalidade, é inadmissível responsabilizar Padre Cícero pelo estado de penúria em que vive o nordestino. Sabe-se que o nordestino iletrado e desprovido dos meios de subsistência, quando se descobre vítima da falta do pão da justiça social e privado do olhar da solidariedade humana, via de regra recorre ao sobrenatural, caminha em busca da proteção divina e é, justamente aí, que a figura do Padre Cícero aparece como o padrinho que faz a intermediação das preces e dos rogos de cada um desses desafortunados.
Instalado dentro desse contexto, Padre Cícero não está necessariamente alimentando fanatismo; ao contrário, está é alimentando a fé do nordestino desamparado. É assim, de fato, que os romeiros conseguem ver a postura de seu padrinho diante dos seus pedidos. Ninguém é forçado a gostar ou a recorrer ao Padre Cícero nos momentos de infortúnio. Os romeiros o procuram espontaneamente e dificilmente o largam, porque acreditam nele mais do que em qualquer político ou mesmo do que em muitos santos oficiais. Mas isso só será fácil de entender, se for observado sem preconceito e estudado cientificamente, como vêm fazendo as irmãs cônegas de Santo Agostinho Annete Dumoulin e Teresinha Stela Guimarães (ambas psicólogas e com excelente formação acadêmica em nível de doutorado), há mais de trinta anos estudando os romeiros nordestinos. É preciso compreender muito bem o que se passa dentro do imaginário dos romeiros, pois do contrário corre-se o risco de interpretar mal suas atitudes.
Também usando a coerência e a racionalidade é inadmissível elevar Padre Cícero à categoria divina, embora não se possa colocá-lo na categoria de homem comum, pois se o fosse, com a morte teria desaparecido por completo. E isto não ocorreu, porquanto sua memória continua viva no coração de seus milhares de devotos.
É fácil perceber como foi feito o enfoque apresentado pelos primeiros biógrafos do Padre Cícero. Todos, invariavelmente, estavam movidos por interesses pessoais, paixão, inveja, ódio, amor, ou então a serviço de alguma organização (a Igreja, inclusive), formando-se então uma forte corrente bilateral interessada em difamar e destruir ou louvar e santificar o Padre Cícero.
Estudiosos como Ralph Della Cava, Marcelo Camurça, Luitgarde Oliveira, Maria do Carmo Pagan Forti, Renata Marinho, Teresinha Stela Guimarães, Francisco Salatiel, Antônio Braga, Régis Lopes e muitos outros aceitaram o desafio de tirar da penumbra a real história do Padre Cícero.
Seus trabalhos, resultantes de meticulosa pesquisa e com coleta de dados em fontes somente agora acessíveis, estão contribuindo para formatar a nova figura de Padre Cícero. Atualmente, ele não é mais visto como alimentador de fanatismo, pois segundo o historiador Marcelo Camurça: “Isto foi compreendido pela antropologia e pela sociologia modernas não como fator de ignorância, alienação, mas como uma apreensão da realidade por aquelas populações com sua coerência e lógica interna”.
Após exaustivos estudos, os historiadores modernos conseguiram entender os reais motivos que levaram o Padre Cícero a se envolver, mas sem efetivamente comandar, a famigerada Revolução de 1914, quando as tropas chefiadas pelo Deputado Floro Bartolomeu apearam do poder do governo cearense o coronel Franco Rabelo. E sobre a questão do milagre, a aceitação corrente é que não houve embuste, contrariando a tese explicitamente defendida no passado principalmente pela Igreja.
Pode-se dizer que a moderna bibliografia de Padre Cícero tem como marco de referência maior a obra do historiador americano Ralph Della Cava, intitulada Milagre em Joaseiro, publicada inicialmente nos Estados Unidos e depois no Brasil (1976). Ele produziu o primeiro trabalho de cunho acadêmico publicado sobre Padre Cícero, tendo contribuído de forma efetiva para inaugurar a nova fase de estudos sobre Padre Cícero.
Depois dele, a vida de Padre Cícero passou efetivamente a ser alvo de estudo nas academias não só do Brasil, mas também do Exterior. Outra fonte que também tem contribuído de forma eficiente para diversificar e aprofundar a pauta de estudo sobre Padre Cícero são os congressos, simpósios e seminários realizados por diversas universidades brasileiras e outras instituições. Os três simpósios realizados pela Universidade Regional do Cariri, por exemplo, produziram excelentes trabalhos envolvendo a participação de estudiosos do Brasil e do Exterior. Graças a eles o número de pesquisadores agora envolvidos com a história de Padre Cícero cresceu substancialmente.
Ao promover seus fóruns de debates, esses eventos democratizam as discussões em torno do Padre Cícero e daí sempre emerge uma farta e consistente produção de textos de excelente qualidade, e isso, claro, elucida certas questões até então nebulosas para muitos pesquisadores e o público em geral.
Ultimamente a própria Igreja, através da Diocese de Crato, está contribuindo para que esse novo enfoque de estudo do Padre Cícero prospere. O bispo Dom Fernando Panico abriu os arquivos da Diocese e os colocou à disposição dos pesquisadores. Com isso, documentos até então guardados a sete chaves estão agora acessíveis, contribuindo eficazmente para que muitas dúvidas sejam dirimidas.
Na verdade, de uns tempos para cá, tudo mudou na historiografia de Padre Cícero. O milagre da hóstia, por exemplo, já foi discutido em simpósios, dissecado pela parapsicologia, examinado em laboratório, evoluindo de embuste para aporte, estando hoje bem mais próximo de ser mesmo um fato extraordinário. Se não for um milagre eucarístico autêntico, como há quem queira, será alguma coisa do tipo “o dedo de Deus está aqui...”, como também há quem queira.
As romarias, antes apontadas como manifestações de fanatismo, ou movimento de massa de gente ignorante, são hoje objeto de estudo de primeira linha das ciências sociais e já receberam o selo de reconhecimento oficial da Igreja na própria diocese que as condenou.
Padre Cícero agora aparece repaginado com status de ecologista, sábio do sertão, a pessoa que colocou a cidade de Juazeiro do Norte no mapa do Brasil. Por isso, falar mal dele é conduzir atestado de ignorância.
E as pessoas que gravitam na órbita de sua história também foram contempladas com uma nova ótica de observação e julgamento. Assim, o professor José Marrocos não é mais tido como embusteiro nem fanático. Readquiriu seu status de educador e de abolicionista. A beata Maria de Araújo, tão ultrajada, tão vilipendiada, ressurge agora conduzida pelos estudos da professora Maria do Carmo Pagan Forti como uma mulher corajosa, de apagada da história para protagonista do milagre, com direito a simpósio e estudo acadêmico e até estátua exposta publicamente, conduzida em procissão. Quem poderia imaginar isso no passado!
E Juazeiro do Norte, a cidade fundada pelo Padre Cícero, graças a esta nova tendência de estudo que está sendo dado à história do seu fundador, saiu da humilhante posição de “núcleo de fanáticos”, “terra de jagunços”, “de gente guiada por Satanás” para a confortável posição de maior polo universitário do interior cearense, um lugar de terreno fértil onde prosperam grandes empreendimentos.
O que está havendo, afinal? Quem provocou tal mudança? A resposta está no próprio personagem: o Padre Cícero.
Os novos estudos sobre ele têm outra direção. E se ele proferiu a célebre frase “Tudo tem seu tempo”, o tempo dele chegou.
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